Um vira no baú

73 Rotações: Karina Buhr interpreta hoje (26/09) o disco “Secos e Molhados”, de 1973, no Sesc Santana, às 21h, com ingressos esgotados. Guilherme Werneck aproveita a ocasião e vira o baú da memória para trazer suas lembranças e impressões atualizadas sobre o primeiro disco da banda de João Ricardo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad. Leia!

SecoseMolhados1973
Em 1974 eu tinha dois anos. Nada me fascinava mais do que o baú enorme que ocupava o espaço central da sala de estar da casa dos meus avós. Ladeado por duas poltronas e duas caixas de som pesadíssimas de madeira, o baú era todo feito em madeira entalhada e guardava um tesouro: o sistema de som hi-fi. E era bom mesmo. Encaixados em nichos especiais, ficavam uma bela vitrola, um receiver e um gravador de fitas cassete, tudo supermoderno. Dentro do móvel, além da escovinha para limpar discos, ficavam dois microfones incríveis. Não eram aqueles de artista, estavam mais para a imagem que eu formei do que seria um microfone de radialista, com seus pedestais fixos. Eles sobrevivem no meu escritório ainda hoje.

Fato é que eles eram mais do que simples microfones. Eram a porta para as minhas fantasias de cantor, que, volta e meia, minha avó Regina gravava, já que o som era o território dela. Muito justo levando-se em conta que meu avô era surdo e não dava a mínima para aquilo tudo.

Essa volta toda é para dizer que a minha memória musical mais antiga é justamente a de cantar “O Vira”, do Secos e Molhados, em 74. Ou melhor, é a de ouvir essa gravação nos anos seguintes, de sentir um misto de vergonha e orgulho daquela vozinha esganiçada cantando “bailam corujas e pirilampos entre os sacis e a fadas”. Posso dizer que ao voltar a essas memórias vejo com um certo alívio o fato de não existir internet e de essa gravação ter ficado restrita aos almoços de domingo.

A questão que ainda me deixa instigado hoje, 40 anos depois do lançamento desse primeiro disco do Secos & Molhados, em 73, é a do poder transformador absurdo que a banda imprimiu na cultura brasileira da época. Afinal, se eu cantava com dois anos, minha avó tinha o LP na sua discoteca, e ela certamente não era hippie aos 60 e poucos.

Minha tese é a de que esse é um álbum tão rico, com tantas possibilidades de leitura, com tantas entradas possíveis dependendo das referências de quem ouve, que é difícil não manter algum tipo de relação íntima com ele ao longo da vida. E são camadas de sentido absolutamente complementares, quando não antagônicas.

Olhando a história pelo lado vencedor, Secos & Molhados é a banda do Ney Matogrosso, e explode por conta dele. Claro que o carisma, a voz, a presença de palco de Ney capturam os holofotes. Mas a verdade é que o motor criativo da banda é o compositor João Ricardo. Filho do poeta português João Apolinário, com quem assina “Amor” e “Primavera nos Dentes” (a minha preferida do disco nesta altura da minha vida), João Ricardo é o compositor de todas as canções, menos da versão de “Rosa de Horoshima”, de Vinícius de Moraes, composta pelo terceiro membro da banda, Gerson Conrad. É dele o conceito brilhante de transitar entre a poesia jovem do grupo e poetas consagrados. Metade das letras de “Secos & Molhados” são poemas que vêm dos livros de João Apolinário, Solano Trindade, Cassiano Ricardo, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira. O legal é o fato de serem leituras sem cerimônia., tão transgressoras quanto o visual andrógino e o uso teatral da maquiagem.

É também de João Ricardo a direção musical. Embora o núcleo duro da banda seja o trio composto por Ney, Gerson e João Ricardo, é o esforço de estúdio, com a banda montada para tocar na gravação, que faz esse disco ser tão representativo de uma época e tão fora do tempo.

Começando pela capa, temos o caso do baterista Marcelo Frias, que poderia ter passado para a história como o quarto integrante da banda, mas desencanou. Ele faz a cama do disco com o baixista Willi Verdaguer. Os dois eram do conjunto argentino/paulistano Beat Boys, mais famoso pela participação em “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso. Outra adição certeira é a do guitarrista John Flavin, do power trio de Arnaldo Baptista Patrulha do Espaço. Não dá para imaginar esse disco sem as guitarras matadoras de “Assim Assado”, de “Mulher Barriguda”, ou do diálogo de piano e guitarra em “Primavera nos Dentes”. E, para terminar, há o toque do piano do sintetizador de Zé Rodrix em “Fala”, a balada blueseira que fecha o disco.

A mistura entre alta cultura e rock’n’roll, entre o acústico e o elétrico, entre a música negra norte-americana e a brasileira faz com que o Secos & Molhados seja encaixado na gaveta dos tropicalistas tardios. Não concordo com essa tese. Claro que há um paralelismo na justaposição de elementos musicais e poéticos, no jogo entre protesto inteligente e escapismo e na mistura de caminhos culturais  – não dá para deixar de considerar esse gosto pelo eclético e pelo exótico, presente na percussão pan-americana de “Sangue Latino” ou a alma lusitana de “O Vira”. Mas mais do que um filhote dos Tropicalistas, o Secos & Molhados é uma banda alinhada com o pós-modernismo libertador do começo dos anos 70. Se tem Caetano e Mutantes ali, tem também uma conversa entre outros elementos musicais e estéticos, como a psicodelia, o glam rock, a política da sexualidade, bastante similar a de um New York Dolls (que lança seu primeiro disco também em 1973, a teatralidade e maquiagem, coisas que já estavam nas pirações de um Alice Cooper e que surgem, na mesma época, com uma conotação bastante diferente com o Kiss.

Foi justamente essa alma universal que fez com que esse disco adquirisse sentidos diferentes ao longo da minha vida. Minha identidade foi se formando nessa viagem que começa com “O Vira” e “Rondó do Capitão” na infância, passa pela chapação de “Assim Assado”, “Amor” e “Mulher Barriguda” na adolescência, pelo lirismo de “Sangue Latino”, “Fala” na vida adulta até para se acomodar hoje nesse mundo de “Primavera nos Dentes”, de quem tem “consciência para ter coragem” e “não vacila mesmo derrotado.”

(Por Guilherme Werneck)

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