O mesmo tapa, com outra mão

Em 2007, Seun Kuti ainda ensaiava os primeiros passos de sua carreira solo. Foi quando a Radiola Urbana teve o prazer de entrevistá-lo por email sobre suas lembranças de Fela Kuti, o trabalho com a banda Egypt 80 e suas impressões sobre o hip hop. De lá para cá, já são dois discos gravados — “Many Things” (2008) e “From Africa With Fury: Rise” (2011) — e até uma passagem pelo Rio de Janeiro, no festival Back 2 Black, em 2010. Há cinco anos, ele já previa: “é impossível parar o movimento agora”.

Afrobeat é compromisso na família de Fela Kuti. Além do relativamente conhecido Femi Kuti (que esteve no Brasil por duas vezes — pelo Free Jazz, em 1999, e no Festival Batuque, em 2010 — e já trabalhou com rappers como Mos Def e Common), o caçula Seun Anikulapo Kuti também guarda nos genes os elementos da música criada pelo pai. Integrante da banda Egypt 80 desde os oito anos e atual residente da República Kalakuta, o músico assumiu sua liderança aos 15, quando Fela morreu (em 02 de agosto de 1997). Agora, prepara-se para lançar seu primeiro disco à frente do mesmo time de instrumentistas com quem convive desde a infância. Escudeiros fiéis da batida perfeita, Seun Kuti & Egypt 80 oferecem um contraponto da estética original no momento em que bandas norte-americanas – como Antibalas, Nomo, Budos Band e Daktaris – consolidam uma tendência de filtrar o afrobeat por uma abordagem contemporânea. Era só o que faltava pro bicho pegar de vez.

Você continua vivendo na Nigéria? As coisas mudaram no país ou continuam do jeito que sempre foram?
Ainda vivo em Lagos, cidade onde nasci e vivi toda a minha vida, exceto por um curto período em que morei na Inglaterra como estudante. A situação mudou – os ricos são agora mais ricos e os pobres miseravelmente pobres. A polícia ainda nos agride nas ruas por dizermos que sabemos os nossos direitos. Este é o quadro, você sabe, o mesmo tapa, só que com a outra mão.

Você tinha 15 anos quando Fela morreu. Poderia falar sobre suas lembranças daquele período?
Minhas lembranças são meio borradas, foi um período muito turbulento, e naquele tempo eu tive de tomar a liderança da banda ou assisti-la morrer. Havia muita pressão sobre mim e no meio de todo o caos ainda tive de lidar com a perda do meu pai.

A propósito, quantos irmãos você tem?
Tenho dois irmãos e 67 irmãs (brincadeira). Meu pai teve apenas seis filhos biológicos que eu conheço, três meninos e três meninas. Não teve outras crianças.

Como é trabalhar com o Egypt 80?
Bem, você sabe, venho tocando com essa banda desde que tenho oito anos. E, mesmo que eu seja o líder agora, ainda sinto como se fôssemos uma família.

Qual a importância das dançarinas nas apresentações?
A mulher africana é uma arte, então as dançarinas são muito importantes para mostrar também essa parte da nossa cultura.

O que você procura quando faz música? Suas músicas dão a impressão de que a idéia é levar adiante o trabalho de seu pai. Você concorda?
Eu não procuro nada – acho que a música me encontra. Às vezes ela chega quando estou dormindo, comendo, trabalhando. A qualquer hora ela me diz: “liberte-me para o mundo” (risos). Basicamente, deixo o ritmo me guiar. Meu pai foi um grande homem com muito para ensinar. Sinto-me honrado que meu trabalho remeta à música dos mestres. Mesmo que Fela não fosse meu pai, eu ficaria orgulhoso em levar adiante tal mensagem como objetivo da minha existência. Precisamos emancipar a mente de meu povo.

A música de Fela Kuti sempre foi engajada na denúncia da desigualdade que existe no continente africano. Você também tem essa preocupação?
É claro. Sou um africano que é verdadeiro com ele mesmo, e meu sucesso não é a minha felicidade. Ainda estou triste porque o governo na África acha difícil tratar pessoas como seres humanos. Tenho certeza de que alguns animais de estimação comem melhor do que 60% da população.

Então, as idéias de Fela Kuti continuam atuais?
As idéias dele ainda servem porque tudo o que ele estava falando ainda acontece, só que em escala muito maior e de maneira inconseqüente. Os dominantes podem sentar, cruzar os braços e serem felizes contanto que os líderes continuem dando a África a eles, pedaço por pedaço, em detrimento do restante da população.

Em sua opinião, quais outros artistas além de Fela ajudaram a popularizar o afrobeat nos anos 70?
Ele era o único músico de afrobeat na época, mas acho que a lealdade dos integrantes de sua banda foi algo crucial para a resistência, porque eles realmente passaram por muita coisa juntos. Se eles tivessem deixado a Nigéria quando foram perseguidos pelo governo talvez não houvesse afrobeat hoje.

O que você acha de bandas atuais de afrobeat, como Nomo, Antibalas, Daktaris e Budos Band?
Sinto como se elas fossem todas testemunhas da vitória de meu pai sobre as pessoas que tentaram calá-lo. Não só essas que você mencionou, mas há bandas de afrobeat em todo lugar no mundo. É impossível parar o movimento agora.

O afrobeat é um movimento ou um gênero musical?
Muito mais do que apenas um gênero, eu sempre digo que é um movimento.

Nomes como Dr. Dre e Timbaland são citados como influências no seu trabalho. O que o hip hop e o afrobeat têm em comum?
O afrobeat é real como o bom hip hop. Hoje em dia muita gente se vende no hip hop pelo dinheiro, mas os verdadeiros o conservam. Tudo é música negra. E a batida nos conecta a todos.

Você toca músicas de Fela Kuti nos seus shows?
Sim, abro todos os concertos com uma música de meu pai, como sinal de respeito ao homem que nos seu tudo isso… Suas músicas têm os melhores arranjos de metais que já ouvi.

(Por Lígia Nogueira e Ramiro Zwetsch)

4 comments

  1. Caramba o que aconteceu com o Radiola Urbana, curtia aqueles programas que faziam antes e disponibilizavam muita coisa boa e desconhecida.

    Quero minha radiola antiga!

    Abraço

    • Olá Dado! Do que você sente falta, exatamente? A gente tem republicado podcasts antigos e gravando alguns novos com o mesmo espírito de sempre… Ou não! Obrigado pelo contato e abraço! Ramiro

      • Olá Ramiro.
        Realmente o espírito continua o mesmo, mas se me permite uma observação.
        Vocês tem muita coisa antiga que poderia estar disponibilizada de uma forma mais prática.
        Tem dois programas em especial que além de curtir, me fez rir muito. Um era só sobre músicas sobre bebida e outro com músicas com alusão a maconha.
        Muito bom! Onde está esse material?

        Vida corrida! Hoje me lembrei de vocês e resolvi dar uma procurada.

        Abraço.

        • Olá Dado!

          Pois é, tivemos dificuldade em viablizar estes programas via soundcloud por causa de direitos autorais. Vou tentar mexer nisso novamente…

          Um abraço!

          Ramiro

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