Muito além dos 50 anos
Um dos discos mais importantes da música brasileira completa 5 décadas em fevereiro de 2016: “Os Afro-Sambas”, de Baden Powel e Vinicius de Moraes. Leia!
A contribuição da matriz rítmica do candomblé para a música brasileira é infinita. Ecoa na obra de nossos maiores compositores (como Dorival Caymmi, Gilberto Gil e Jorge Ben), inspira os experimentos de alguns dos discos mais cultuados já lançados no Brasil – como “Coisas” (Moacir Santos, 1965) e “Krishnanda” (Pedro Santos, 1968) e “Orquestra Afro-Brasileira” (1968) – e se reprocessa em diversos ritmos que frequentam o rádio e as manifestações de rua desde que o samba é samba. É, no mínimo, estranho constatar que uma expressão religiosa tão viva no inconsciente coletivo brasileiro através de canções populares e até no vocabulário seja ainda tão discriminada – a ponto da palavra “macumba”, termo originalmente associado aos cultos e festas dos terreiros, ter adquirido um significado pejorativo do qual, aparentemente, nossa língua portuguesa não vai se livrar tão cedo.
“Os Afro-Sambas” (Baden Powell e Vinicius de Moraes) é certamente um dos discos mais simbólicos e explícitos a trabalhar com os signos do candomblé pelo viés do que se convencionou chamar de MPB. Lançado pelo selo Forma em 1966, o trabalho escancara tal inspiração nos ritmos tirados dos toques de santo, na instrumentação (com elementos percussivos comuns nos terreiros – como atabaque, agogô, afoxé e bongô – amalgamados com violão, flauta, sax, bateria e contrabaixo), no título das músicas (“Canto de Xangô”, “Canto de Iemanjá”, “Lamento de Exu” etc.), nas letras e no texto de contracapa assinados por Vinicius. “Quando há quatro anos atrás, Baden Powell e eu começamos a compor para valer (ficamos praticamente sem sair durante três meses, ‘Samba em Prelúdio’, ‘Só Por Amor’, ‘Bom Dia, Amigo’, ‘Labareda’ e o ‘Astronauta’ são dessa safra), uma das coisas que mais o fascinava era ouvir um disco que meu amigo Carlos Coquejo me trouxera da Bahia: uma gravação ao vivo de sambas de roda e cantos de candomblé, com várias exibições de berimbau em suas diversas tonalidades rítmicas. Nesse meio tempo, Baden deu um pulo em Salvador, onde teve oportunidade de ver e ouvir candomblé e conviver com gente ‘por dentro’ do assunto”, escreve Vinicius, para mais adiante completar: “Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal.”
À parte toda explicação de riqueza lírica do poeta, a audição de “Os Afro-Sambas” oferece ao ouvinte algo que se aproxima realmente de um tipo de experiência espiritual. O violão de Baden sempre e merecidamente exaltado pela técnica, serve aqui mais ao ritmo e ao ambiente do que ao virtuosismo: cria climas, parece traduzir em música o mistério que envolve as aparições que acontecem nos cultos. Musicalmente, o violonista credita parte dos caminhos que ele encontrou no disco ao estudo de outra linguagem musical com raiz religiosa e a Moacir Santos, com quem tinha aulas de cantos gregorianos à época. “Eu fazia umas composições para o maestro ler. E eu percebi que os cantos africanos tinham muitíssima semelhança com os cantos gregorianos. Para mim, são iguais”, diz ele, em depoimento presente na biografia “O Violão Vadio de Baden Powell” (editora 34), de Dominique Dreyfus. “Eu dei então uma levantada num tipo de samba mais negro, que tem um lamento próximo do dos cantos africanos, que parecem com os cantos gregorianos. Aqueles mesmos, inclusive, que os jesuítas ensinaram aos índios no nordeste. Nesse trabalho com o Moacir Santos, eu compus uns temas partindo dessas semelhanças entre o modo litúrgico e o africano, e aproveitei alguns para as parcerias com o Vinicius.”
A beleza do álbum aparece também nos detalhes de sua concepção. Vinicius escreve no texto de contracapa que combinou com o produtor e diretor artístico Roberto Quartin que “o disco seria feito com um máximo de liberdade criadora e um mínimo de interesse comercial”. “Não nos interessava fazer um disco ‘bem feito’ do ponto de vista artesanal, mas sim espontâneo, buscando a transmissão simples do que queriam nossos sambas dizer. Gravaríamos, inclusive, faixas mais longas do que gostam os homens de rádio e, consequentemente, a maior parte dos nossos intérpretes”, diz. “E embora não sejamos cantores, no sentido profissional da palavra, preferíamos gravá-las nós mesmos a entregá-las a cantores e cantoras que realmente distorcem a melodia e o ritmo das canções em benefício de seu modo comercial, ou de suas deformações profissionais, adquiridas no sucesso efêmero junto a um público menos exigente.”
Assim, além da voz onipresente de Vinicius, das harmonizações do Quarteto em Cy e do timbre de Dulce Nunes (especialmente inspirada em “Canto de Iemanjá”, que ela introduz com um canto que emula de forma hipnótica o poder de sedução da rainha do mar), há também o apelidado “coro da amizade” convocado para “‘desprofissionalizar’ ao máximo a gravação” formado por amigos da dupla – entre eles a atriz Betty Faria (que é quem protagoniza junto ao poeta a dinâmica de pergunta e resposta de “Canto de Ossanha”) e a mulher de Vinicius, Nelita. O toque final para a verdade que transborda das composições são os arranjos e regência do maetro Guerra Peixe, que consegue exaltar a pureza das melodias com relativa simplicidade na instrumentação: violão, percussão, sopros e vocais vão direto ao ponto sem grandes floreios.
“Os Afro-Sambas” foi lançado em fevereiro de 1966 e, portanto, acaba de completar 50 anos. Raríssimo em vinil, o trabalho sempre ecoa contemporâneo (jamais o “efêmero” previamente descartado por Vinicius ) e o culto em torno dele parece ganhar força na mesma medida em que a presença de um exemplar do LP original é cada vez mais improvável nos sebos e lojas do Brasil. Gilberto Gil cantou que a fé não costuma falhar e a música brasileira apresenta alguns exemplos de discos clássicos que se basearam em algum tipo de crença, religião ou espiritualidade – como os dois volumes de “Tim Maia Racional” (de 1975 e 1976, totalmente baseados no livro “Universo em Desencanto”, dedicado à divulgação da chamada cultura racional) e “A Tábua de Esmeraldas” (de 1974, que Jorge Ben concebeu sob inspiração da alquimia). Pode-se acrescentar mais um monte de casos na música mundial: desde o disco de louvação a Deus de John Coltrane (“A Love Supreme”, de 1965) até as infinitas obras de reggae entorpecidas pela devoção ao rastafarismo. Baden e Vinicius também chegaram lá com “Os Afro-Sambas” e reforçam o sentimento de que ouvir música é (ou pode ser) uma forma de nos conectar com algo além. Salve!
(Por Ramiro Zwetsch)
No comments
Trackbacks/Pingbacks