Marley, 80: além da lenda
O Bob Marley comunista que você demorou 80 anos pra conhecer: Gabriel Rocha Gaspar escreve sobre a militância do mais popular artista nascido em um país de terceiro mundo, como este engajamento quase lhe custou a vida em 1976 e a pasteurização que insiste em reduzir sua obra gigante aos mesmos hits de sempre. O jamaicano faria 80 anos neste 6 de fevereiro de 2025.
Neville Garrick contava de um voo que pegou na madrugada do dia 6 para o 7 de dezembro de 1976, da capital jamaicana Kingston para Nassau, nas Bahamas. Além do diretor de arte por trás das capas de discos de Burning Spear, Peter Tosh, Bunny Wailer e, mais notoriamente, Bob Marley, o Boeing 707 da British Airways (a antiga rota colonial inglesa só seria assumida pela Air Jamaica nos anos 90) levava o próprio Marley. “Nunca vi ele tão quieto”, rememora Garrick em entrevista ao documentário “Marley” (2012), de Kevin McDonald. “Durante esse voo e o seguinte, de Nassau para Londres, ele só olhou pela janela sem falar nada”.
Dá para imaginar a razão geral do silêncio. Apenas três dias antes, atiradores haviam cruzado os sempre abertos portões da 56 Hope Road – número da mansão colonial na Beverly Hills de Kingston convertida em QG da cultura negra, rastafari, da favela – para tentar o impensável: matar Bob Marley. Pense no absurdo dessa frase… Não se mata Bob Marley em Kingston, como não se mata Fela Kuti na República Kalakuta ou Mano Brown na Vila Fundão. Mas alguém tentou. E essa tentativa alugou um quarto debaixo dos dreads de Bob.
Carregando por mais de uma década o estandarte de porta-voz inconteste do preto pobre na Jamaica, Bob sabia o que era viver na mira. Até 1976, entre contratempos de guitarra, graves baixos flutuantes e a marcante ênfase da bateria na terceira batida de cada compasso, ele já havia proferido frases como:
“Them Belly Full (But We Hungry)”, 1974
Dem belly full but we hungry / A hungry mob is a angry mob (Eles de barriga cheia e nós com fome / Uma multidão com fome é uma multidão com raiva)
“Burnin’ And Lootin'”, 1973
All that we got it seems we have lost / We must have really paid the cost / That’s why we’re going to be burning and looting tonight (Tudo que a gente tinha, parece que perdemos / A gente deve mesmo ter pago o preço / E por isso vamos queimar e saquear essa noite)
“Revolution”, 1974
It takes a revolution to make a solution / Never let no politician grant you a favour / Or they will always want to control you forever / So if there’s fire make it burn / If there’s blood let it run (É preciso uma revolução para trazer uma solução / Nunca deixe um político te fazer um favor / Ou ele vai querer te controlar para sempre / Então, se for fogo, deixa queimar / Se for sangue, deixa correr),
“Slave Driver”, 1972
Slave driver, the table is turned / Catch a fire, you’re gonna get burned (Senhor de engenho, a mesa virou / Se prepara, você vai queimar),
“Rat Race”, 1976
Don’t involve rasta in your say say / Rasta don’t work for no CIA (Não envolva os rastas no seu diz que me diz / Rastas não trabalham para a CIA)
Além do fato de terem atingido o topo das paradas jamaicanas, o que todas essas faixas têm em comum são as ameaças abertas que fazem aos poderes estabelecidos: capitalismo, colonialismo, supremacia branca. Quem bate de frente ganha um alvo na testa.
Bob sabia disso quando resolveu estrelar o Smile Jamaica Concert, show que desencadeou um atentado contra sua vida, em 3 de dezembro de 1976. Ele conhecia as implicações políticas de cantar de graça no Estádio Nacional, com o país à beira da guerra civil, e a CIA tentando derrubar o governo de seu amigo primeiro-ministro Michael Manley, do socialista People’s National Party (Partido Nacional do Povo, PNP).
Talvez ele não imaginasse que Manley convocaria eleições legislativas imediatamente depois do show (como fez), pegando carona na popularidade do rastaman. Mas que, ao subir no palco, estava endossando o governo, isso ele sabia com certeza. Até porque endossar o PNP não era novidade para Bob Marley. Em 1971, por exemplo, ele e os Wailers originais Peter Tosh e Bunny Wailer integraram a Band Wagon, uma caravana itinerante de artistas que fazia showmícios em apoio à primeira candidatura bem-sucedida de Manley à chancelaria. Lá também estavam Judy Mowatt, Max Romeo, Ken Boothe… Em contexto de Guerra Fria, passados menos de 10 anos da crise dos mísseis, todos pelo socialismo em uma ilha a menos de 400 km de distância da Cuba revolucionária.

Cartaz anunciando festival da Band Wagon em apoio à candidatura de Manley; os rostos de Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer são os três primeiros do lado direito
“Redder than Red” (Mais vermelho que o vermelho, não por acaso), gravada pelos Wailers justamente em 1971, foi tema informal da campanha. Nela, Bob promete: “I’ll never hurt you / Never let you down / I’ll stand always beside you / I’ll be true to the people / Who I love / Cause I’m red, redder than red / dread, dreader than dread” (Eu nunca vou machucar vocês / Nunca vou decepcionar / Estarei sempre ao seu lado / Sempre serei verdadeiro ao povo / Que eu amo / Porque sou vermelho, mais vermelho que o vermelho / Sou dread mais dread que o dread”.
Mais vermelho que o vermelho; mais dread que o dread era o jingle perfeito, a julgar pela descrição do clima da campanha feita pelo historiador Connor Doyle, em artigo publicado na revista acadêmica Caribbean Quilt: “Nos comícios do PNP por todo o país, músicas reggae com letras abertamente revolucionárias ecoavam pelos sound systems. Os candidatos empregavam expressões tipicamente rastas, como ‘Hail de man’ e ‘Peace and Love’. Militantes do partido chegavam a comparar Manley a um Josué dos tempos modernos, enviado para libertar os jamaicanos da opressão do Partido Trabalhista [de direita, ligado aos Estados Unidos, apesar do nome], liderado por Hugh Shearer. Manley reforçava essa imagem carregando um cajado que chamava de ‘Vara da Correção’, um símbolo de campanha carregado de significados rastafáris”.
Conta o ex-guitarrista dos Wailers Al Anderson, que, discretamente, Marley visitou Havana junto com Manley. “Bob vai para Cuba com Michael Manley, que tem conexões comunistas. Ele conversa com Castro. Michael Manley, Bob Marley e [Fidel] Castro”. Ainda que Manley tenha feito diversas visitas a Fidel, tanto durante a campanha quanto no cargo de premiê, não emergiram provas materiais desse encontro em particular. Mas o que Anderson conta em seguida é bastante plausível: “O Ocidente não gostou disso. Eles ficavam malucos com a ideia de que pessoas de diferentes lugares estavam se reunindo não para enfrentar os Estados Unidos, mas simplesmente para debater aquilo em que acreditam. Os estadunidenses torciam o nariz. E, quando Bob Marley se transformou nessa figura política tão grande, a ponto de conseguir eleger Michael Manley com um simples show, agentes do FBI e da CIA vieram falar com a gente. Chegaram em todos os membros da banda e falaram especificamente para mim, que avisasse ao Bob: se ele fizesse esse show e conseguisse eleger Michael Manley, ele seria assassinado, junto com todos nós”.
Al Anderson, que havia gravado e performado com Bob ao longo de todo o ano de 1975, levou o recado ao chefe. Mas foi recebido com indiferença: “Ele deu a outra face, como Jesus. ‘Que venham’”, desdenhou. O guitarrista, autor do lendário solo de “No Woman No Cry”, não quis pagar para ver e deixou a banda, dando lugar ao bluesman Donald Kinsey.
Esse pouco conhecido entranhamento de Bob Marley na política eleitoral jamaicana leva a uma conclusão inevitável: quando homens armados invadiram o ensaio dos Wailers às vésperas do Smile Jamaica e descarregaram os tambores dentro da Island House, Bob Marley podia estar chapado, mas não estava de chapéu. Ele conhecia o lugar, tanto geográfico quanto político, da Jamaica no mundo, como conhecia o contexto da Guerra Fria e tinha lado na história. Então, de volta ao Boeing 707 da British Airways, parece evidente que entre as frustradas reflexões daquele rastaman com uma bala alojada no cotovelo, havia um autoexame político.
Será que a proximidade com Michael Manley seguia estratégica? Será que a Jamaica era o espaço ideal para o exercício de sua política radical, revolucionária? Ou sua palavra incendiária poderia se espalhar com mais facilidade em um lugar que não estivesse cercado de água por todos os lados? Esse devia ser o cálculo político. O cálculo emocional era mais sofrido, e ele fica nítido no primeiro poema que Bob escreveu acerca do atentado:
Quem te deu a ordem
Para nos matar?
Jah Jah Jah nos protege
Ele nunca nos abandonaria
Então para toda essa gente perversa
Que quer nos ver para baixo
Adeus
Foram os discípulos do diabo
Que nos atacaram à noite
Eles fazem a guerra contra o cordeiro
Mas o cordeiro prevalecerá
Então, quando você despertar pela manhã
O sangue inocente estará na sua consciência
Dois sentimentos saltam aos olhos nessas estrofes: o rancor e o clamor por uma vingança divina, digna do Velho Testamento. O rancor emana do fato de que não foram mercenários estrangeiros de pele branca, sem relação cultural ou afetiva com Bob Marley e o que ele significava para o país. Eram pretos jamaicanos de favela, como ele. E o clamor por vingança, do fato de que pretos jamaicanos o teriam traído de maneira tão vil e sorrateira. Não entenderam a dor e as lágrimas do palhaço?
É um poema no qual a identificação de raça e classe está turvada pela raiva e pela perplexidade. E talvez esteja aí o motivo desses versos nunca terem visto a luz do dia. Bob, que compunha absolutamente todos os dias, levaria dois anos para trazer à tona uma canção sobre o atentado.
Mas antes de falarmos dela, esses dois anos merecem um comentário. Eles principiam com tentativa de assassinato, seguem para o exílio em Londres e a consequente aproximação com o movimento punk; testemunham a primeira visita ao continente africano e a confecção de seus três álbuns mais diferentes entre si, o místico “Exodus” (1977), o pop “Kaya” (1978) e o mais carregado politicamente de todos, “Survival” (1979″. É um período de explosão de criatividade e complexidade social, política e cultural. Digno de filme. Pena que o filme que veio não seja digno dessa atmosfera tão nutritiva.
No longa-metragem “One Love” (2024), ao tentar retratar esse momento de reconfiguração de Bob Marley e de sua relação com o mundo, o diretor Reinaldo Marcus Green e seu produtor executivo Ziggy Marley criam um personagem apolítico. E tentam nos convencer que, depois de mais de uma década não só de ativismo, mas inclusive de militância partidária, esse homem era ingênuo; não tinha nem ideia das consequências de seus próprios atos.
É um aplainamento brutal. Tão brutal, que não comporta a principal investigação que Bob Marley faz no período, aquela que o leva do rancor místico à elaboração materialista da tentativa de assassinato. A música que Bob Marley compõe sobre o atentado – e, por sinal, faz questão de cantar ao vivo pela primeira vez em solo jamaicano, no Festival Reggae Sunsplash, em julho de 1979 – tem uma moldura ideológica oposta à daquele poema prematuro. “Ambush in the Night” aponta o inimigo; e ele não é ninguém que entrou armado em sua casa:
See them fighting for power
But they know not the hour
So they bribing with their guns, spare parts and money
Trying to belittle our integrity now
They say what we know
Is just what they teach us
And we’re so ignorant
‘Cause every time they can reach us
Through political strategy
They keep us hungry
And when you gonna get some food
Your brother got to be your enemy, well
Ambush in the night
All guns aiming at me
Ambush in the night
They opened fire on me now
Ambush in the night
Anything money can bring
Veja eles lutando pelo poder
Mas eles desconhecem o tempo
Então, nos subornam com suas armas, peças sobressalentes e dinheiro
Tentando diminuir nossa integridade
Eles dizem o que já sabemos
Porque só sabemos o que eles nos ensinam
E nós somos tão ignorantes
Que eles sempre entram na nossa mente
Usando estratégia política
Eles nos matam de fome
E quando você vai buscar comida
Seu irmão vira o seu inimigo
É uma emboscada noturna
Todas as armas apontam para mim
Emboscada noturna
Eles abrem fogo contra mim
Emboscada noturna
Tudo que o dinheiro pode comprar
“Nos subornam” com as armas deles, as peças sobressalentes deles, o dinheiro deles; “Nossa integridade”, “Eles dizem o que nós sabemos”, “nós somos ignorantes e eles entram na nossa mente”… Percebeu? Em direção contrária à que trilha naqueles primeiros versos pós-atentado, aqui Bob Marley fala de seus assassinos na primeira pessoa. Como pode meu matador ser eu mesmo? Bem, por pertencimento de classe. Ele é proletário como eu, explorado como eu, negro como eu, favelado como eu, classe trabalhadora como eu. E quem é o outro personagem, a quem tudo sobra (as armas, as peças, o dinheiro)? Quem é esse dono, que manda matar, promove a lavagem cerebral, bota e tira comida do prato? Por eliminação, é o dono dos meios de produção, o burguês.
Os dois anos de elaboração silenciosa reforçaram a política de esquerda que Bob Marley encampou durante toda sua vida política. O inimigo é o mesmo de sempre, é o inimigo de classe. E isso é tão marcado que, em “Ambush in The Night”, o espaço da religião fica esquálido, praticamente desaparece. É pela materialidade da luta de classes que Bob Marley interpreta sua quase morte. Isso significa que ele abdicou de sua perspectiva religiosa, por vezes conservadora e até reacionária (principalmente em temas como a homossexualidade ou a libertação das mulheres)? De modo algum. Até sua penúltima turnê, Bob subiu ao palco com uma imagem de Marcus Garvey ao fundo, pintada justamente por Neville Garrick. Garrick, aliás, que foi pupilo, companheiro de militância e depois amigo, da filósofa Angela Davis.

Neville Garrick e Angela Davis. Crédito: Obituário de Neville Garrick
Como pode a mesma pessoa que apresentou Bob Marley aos textos do maoísta e pantera negra Huey P. Newton ser um seguidor de Marcus Garvey? Pode. Pode porque gente viva é complexa. E essa complexidade é que fascina. É por causa dessa complexidade – por vezes contraditória, confusa, mas nunca simplória –, que gente como Bob Marley muda o mundo. Não há método mais eficaz para neutralizar esse potencial transformador do que o aplainamento da complexidade. E é exatamente o que faz a busca mesquinha e imediatista do lucro.
Bob Marley faria oitenta anos hoje. Mas ao capitalismo só interessam uns dois, quando saíram seus discos de maior sucesso comercial. Não é à toa que “One Love” se passa justamente entre 1977 e 1978. Em termos estéticos, esse é o Bob mais reconhecível, com os dreads um pouco para baixo do ombro, como registrado no show do Rainbow Theater, em Londres, exibido à exaustão. Além disso, com as faixas desse período – “Natural Mystic”, “Three Little Birds”, “No Woman No Cry” etc. etc. etc. –, a já bilionária família Marley pode requentar a coletânea “Legend” (ou algo parecido com ela) pela quinquagésima vez.
Assim, submete-se algo tão transformador quanto um homem preto de uma favela do terceiro mundo, que permanece vivo no mundo inteiro 44 anos depois de morrer, a uma lógica de conservação. Repetir, no capitalismo, é reduzir riscos: você garante de antemão a viabilidade comercial de um produto ao fazê-lo atingir exatamente a expectativa que o público já tem sobre este mesmo produto. Ou seja, você pesquisa a pré-concepção das pessoas e a devolve a elas em forma de valor, de produto da indústria cultural. E o “Bob Marley 80” entra na mesma lógica do “Homem Aranha 15” ou do “Batman Retorna de novo”.
A maioria – inclusive os fãs de reggae – ainda desconhece boa parte da trajetória política de Bob Marley narrada neste texto. Provavelmente porque, antes mesmo de virar o triste filme de 2024, este ícone da classe trabalhadora negra tenha perdurado quatro décadas sendo passado a ferro quente por Hollywood e adjacências, até não sobrar uma dobra de complexidade. Só que é a complexidade, a dialética, a luta de classes tão didaticamente explicada pela lírica revolucionária de “Ambush in The Night”, que nos permite pensar, refletir, avançar. Seu oposto simplista, a comodificação, é um culto da morte, porque estanca a arte num ciclo que se autorreproduz ad eternum. E se tem alguém que não gostaria de ser embalsamado é este revolucionário que uma vez declarou: “Suas posses te fazem rico? Eu não tenho esse tipo de riqueza. Minha riqueza é viver para sempre”. Não se mata Bob Marley. Nem em Kingston, nem em lugar nenhum.
(Por Gabriel Rocha Gaspar)