Jazz, 1959
1959 foi um ano e tanto para o jazz. Quatro obras são símbolos das transformações que movimentariam o gênero dali pra frente: “Kind of Blue” (Miles Davis), “Mingus Ah Um” (Charles Mingus), “The Shape of Jazz to Come” (Ornette Coleman) e “Time Out” (Dave Brubeck). É um fenômeno interessante que marca também a história de outros gêneros. O rock de 1967 (com “Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, a obra-prima dos Beatles, os dois primeiros do Jimi Hendrix, o primeiro do Velvet Underground, o primeiro do Pink Floyd, entre muitos outros), a MPB de 1972 (com “Transa”, de Caetano Veloso; “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges; “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos; “Expresso 2222”, Gilberto Gil; o primeiro do Jards Macalé e muito mais) e o rap de 1993 (com “Doggystyle”, de Snoopy Dogg; “Midnight Marauders”, do A Tribe Called Quest; “Enter The Wu Tang-Clan”, do Wu Tang-Clan; e “Return of the Boom Bap”, do KRS-One etc.) são outros bons exemplos de anos-chave para um determinado gênero.
A data cabalística do jazz coincide, não por acaso, com o ano de lançamento de “Chega de Saudade”, quando João Gilberto apresenta oficialmente a batida e a atmosfera cool da bossa nova (o samba com inclinação jazzística). E por muito pouco, outro titã do jazz não deixa 1959 ainda mais icônico: embora John Coltrane tenha gravado o revolucionário “Giant Steps” no fatídico ano, seu lançamento ficou para janeiro de 1960. Um portal se abre a partir dos quatro divisores de águas do jazz e, de fato, todos eles apontam rumos possíveis e promissores para a encruzilhada que se cria na década seguinte, com a necessidade de reinventar o bebop tão dominante e influente até então. “The Shape of Jazz to Come” é o atalho para o free jazz. “Kind of Blue” sugere um caminho através do jazz modal. “Time Out” enverada por vias de reinvenção das batidas e novas divisões dos compassos. “Mingus Ah Um” retorna ao ponto de partida do jazz (as raízes do blues e do gospel) para abrir uma rota escondida e exclusiva ao seu inventor. O assunto inspirou, inclusive, um documentário da BBC, “1959: The Year that Changed Jazz”.
“Kind of Blue”, Miles Davis, agosto
Este LP é o símbolo da segunda reinvenção ao jazz proposta por Miles Davis – a primeira foi em “Birth of Cool”, de 1957, quando ele batiza o gênero cool jazz. Agora ele mira a transformação para o estilo modal, em que basicamente as composições flutuam muito mais pelas atmosferas de uma só tonalidade do que pela progressão de acordes. Ainda assim, ele consagra temas como o de “So What” como uma assinatura do jazz. Visionário, ele ainda seria protagonista de pelo menos mais duas reinvenções do gênero e tinha de estar sempre à frente. A banda de “Kind of Blue” é de uma potência absurda. O pianista Bill Evans e os saxofonistas Cannonball Aderley e John Coltrane já estavam acostumados a assumir o papel principal em qualquer banda. O baixista Paul Chambers, o baterista Jimmy Cobb e o pianista Wynto Kelly podiam até ser coadjuvantes, mas estavam em conexão perfeita com as inovações propostas pelo líder. “Kind of Blue” é um dos discos mais vendidos da história do jazz, tema de livro do jornalista Ashley Kahn e frequentemente sugerido como porta de entrada para o jazz aos ouvintes iniciantes no gênero. Suas 5 faixas hoje são tratadas como clássicas: “So What”, “Freddie Freeloader”, “Blue in Green”, “All Blues” e “Flamenco Sketches”.
“Mingus Ah Um”, Charles Mingus, setembro
Baixista mais influente do gênero, Mingus estreia na gravadora Columbia com este trabalho que consagra algumas de suas composições mais clássicas: a caótica “Better Get It In Your Soul”, a belíssima balada “Goodbye Pork Pie Hat” (em homenagem a Lester Young) e “Fables of Faubus” – um contundente recado de revolta ao governador do Arkansas (Orval E. Faubus, conhecido por medidas racistas nos anos 50), que teve letra censurada pela gravadora. É interessante notar como o músicos busca as referências no gospel e no blues de sua formação para criar algo altamente autoral e até destoante das outras transformações do período: não tem o clima de elevação do modal, nem é tão radical quanto o estilo free, tampouco experimenta novas divisões rítmicas. É, porém, extremamente original na fúria impressa no jeito de tocar baixo (algo que contamina toda a banda) e na confusão criativa na comunicação entre os sopros – muitas vezes em combinações estranhas, como se os músicos se entendessem mesmo que falando idiomas diferentes.
“The Shape of Jazz to Come”, Ornette Coleman, outubro
Mais radical dos quatro álbuns, esse foi também o que menos teve boa receptividade à época de seu lançamento. O título é tão ambicioso (na tradução, algo como “a forma do jazz que está por vir”) quanto profético: de fato, o rompimento com as estruturas propostas por Coleman e seu quarteto sem piano (formado por Charlie Haden no baixo, Don Cherry no trompete e Billy Higgins na bateria) seria um guia para muitos jazzistas na década seguinte e criaria o ambiente propício para a consolidação de um novo gênero batizado de free jazz. John Coltrane, que já era reconhecido como um gigante do sax, tomaria aulas com seu colega de instrumento. Já o roqueiro Lou Reed não pouparia elogios ao álbum e elegeria a faixa de abertura (“Lonely Woman”) como a número um de seu ranking pessoal. O reconhecimento, no entanto, precisou de tempo. Coleman chegou a ser expulso de um palco pelo também saxofonista Gerry Mulligan e muitos colegas do jazz não hesitaram em afirmar que “aquilo não era música”. “The Shape of Jazz to Come” foi um disco à frente do seu tempo e hoje não há como negar o alto nível de influência que exerceu para a evolução do jazz e até do rock – as distorções das guitarras da seminal banda Velvet Underground, de Lou Reed, eram declaradamente inspiradas no timbre do sax de Ornette Coleman.
“Time Out”, Dave Brubeck, dezembro
Por um lado, “Time Out” é o oposto de “The Shape of Jazz to Come”: era perfeitamente aceitável musicalmente com sua aura cool e o quarteto com três músicos brancos causava menos desconforto nos ambientes racistas na alta sociedade norte-americana. Sua faixa mais emblemática, “Take Five”, tornou-se o compacto de vinil mais vendido da história do jazz. Porém, há também um certo radicalismo em sua proposta rítmica: todas as faixas experimentam novas divisões de compassos e rompem com o 4/4 dominante no jazz. Embora tenha sofrido alguma resistência na gravadora Columbia e as previsões de vendas não fossem otimistas, Brubeck superou a desconfiança inicial com o estrondoso e imediato sucesso comercial. Para isso, teve de lidar com a briga de egos entre o baterista Joe Morello e o saxofonista Paul Desmond – ambos peças-chave em “Take Five”: se Desmond era o compositor do tema, Morello forneceu a batida 5/4 que impulsiona todo arranjo. O baixista Eugene Wright (o único negro da banda) foi o último a ser integrado ao quarteto dos sonhos de Brubeck e apenas ele permanece vivo entre os quatro.