Voz ativa
Uma voz nigeriana se fez ouvir no último domingo (28-09) no Vale do Anhangabaú, no show de encerramento do Mês da Cultura Independente. Não era um simples cantor: era Seun Kuti, filho de Fela Kuti (lendário ativista e criador do afrobeat), escoltado pela última banda de seu pai (Egypt 80) e com um discurso afiado de denúncias às desigualdades no continente africano. Entre as 10 mil pessoas (segundo a organização) que fizeram o vale tremer, destacavam-se os barulhentos imigrantes nigerianos que se espremeram à frente do palco em uma comovente devoção.
Horas antes, o músico — que faz mais quatro shows no Brasil: Porto Alegre (01/10), Rio de Janeiro (03/10), Belo Horizonte (04/10) e Paraty (11/10) — foi firme e claro em suas respostas sobre a situação de desigualdade social na África. Leia!
Essa já é a sua terceira passagem pelo Brasil e a segunda vez que faz um show gratuito no Centro de São Paulo. Esse tipo de apresentação tem um valor especial para você?
Não é tão diferente, porque costumo tocar em muitos lugares de graça pelo mundo. Mas a energia e a paixão do público brasileiro são únicas. Vir aqui é sempre interessante pra mim por causa da cultura, da música local, da comida, dos lugares, dos sons. Além disso, a conexão entre a África e a América Latina é bem profunda principalmente por causa da manipulação política que houve nos anos 70 e também no que diz respeito ao que está ocorrendo atualmente, mesmo que a América Latina esteja à frente da África. Então pra mim é sempre interessante vir ao Brasil e ver como as coisas funcionam por aqui. A mistura de culturas, os afrodescendentes que estão aqui dando continuidade à nossa cultura – até mais do que na África.
Entrevistamos a Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou (clique AQUI para ler) e eles disseram que gravaram na Nigéria no mesmo estúdio da EMI onde Fela Kuti também gravava, e que mantinham uma relação de amizade com ele. Como é tocar no mesmo palco que eles?
Essa não é a primeira vez que a gente toca no mesmo palco. Fizemos isso em Paris em 2009. É sempre interessante dividir o palco com eles, pois são uma grande banda. Passaram algum tempo meio sumidos e retornaram com força total.
Uma das músicas de seu novo disco, “A Long Way to the Beginning”, chama-se “IMF” e é uma crítica ao International Monetary Fund (Fundo Monetário Internacional). Qual foi a inspiração para compor essa música?
O título não se refere apenas ao International Monetary Fund, mas à intervenção das corporações ocidentais na África. Todas elas são “international motherfuckers” [filhas da puta internacionais]. Nessa música eu falo sobre a concepção errônea sobre a África e sobre a economia no país, sobre o progresso e o governo. Os que governam o país são negros, mas não são africanos. Eles não representam os interesses do povo africano. Basicamente são as corporações internacionais que se dizem preocupadas com a necessidade de se haver investimentos na África, mas o que eu vejo é corrupção e poluição do meio ambiente. Isso é o que nós vivemos quando se fala em investimento. Nós não vemos os benefícios desses investimentos estrangeiros na África. Talvez 2% dos africanos vejam. É tudo corrupção econômica e destruição do meio ambiente. A política do IMF não representa progresso para o povo africano. Quanto mais auxílio a África vem conseguindo, mais pobreza está chegando ao continente.
A música também remete a um clássico de Fela, “ITT – International Thief Thief”. Esse link foi proposital?
Acredito que “ITT” foi a música que inspirou essa ideia. Mas hoje não há mais ITT, há o IMF. A ideia era trazer essa ideologia para o século 21. Nos anos 70, Moshood Abiola, que era vice-presidente da ITT Corporation [empresa global fundada com o nome de International Telephone & Telegraph, sediada nos Estados Unidos e responsável por produzir componentes para os setores de indústria, energia e transportes], com subsidiária na Nigéria, concorreu à presidência e quase ganhou as eleições. Hoje não temos mais isso, e sim o IMF, que não é só o International Monetary Fund, mas todas as multinacionais que exploram os recursos da África, como as empresas que extraem diamantes, por exemplo, sem dar nada em troca.
Suas letras mostram uma preocupação com as desigualdades na Nigéria e na África. Existem outros artistas nigerianos com esse mesmo discurso crítico?
O meu irmão [Femi Kuti] é um deles. É difícil encontrar artistas nigerianos que sustentem uma visão crítica do sistema, porque é difícil conseguir construir uma carreira na África se você falar a verdade. A maioria dos artistas quer trabalhar, sustentar a família. A maioria faz música pra ganhar dinheiro. Não quero dizer que estou julgando o que eles fazem, não vou dizer que a música deles está errada. Mas não vejo muitos artistas na Nigéria ou mesmo na África que falem pelo povo.
Acha que as coisas na Nigéria estão melhores ou piores em relação aos anos 70, período de grande atrito entre Fela e o governo?
A principal diferença é que nos anos 70 nós tínhamos exploradores militares e hoje os exploradores são democráticos. A mudança política que tivemos foi de militar para a democracia. Eu realmente não vejo mudança significativa na vida do homem comum na África e na Nigéria também. Na Nigéria, e na África como um todo, o único desenvolvimento que se vê é na infraestrutura para os negócios. Estradas para transportar os seus produtos e internet disponível para que se conectem. Eles investem em coisas que fazem com que os negócios funcionem. Mas as coisas essenciais para a sobrevivência – hospitais, casas, escolas, transporte –, coisas que as pessoas precisam para viver uma vida digna, previdência social, seguro-saúde, essas coisas não existem. No meu país, se você tem um ataque cardíaco na rua, você morre. Não há serviço de emergência.
As redes sociais tiveram um importante papel nas recentes manifestações populares no Egito e na Primavera Árabe. Você acha que a internet pode ser uma arma para que os jovens reivindiquem mudanças na Nigéria?
Eu não acho que toda rebelião tem acesso livre ao Facebook. Por exemplo, o povo de Gaza: quando criaram a página “Occupy Gaza” e 300 mil pessoas se registraram em um dia, a página caiu. Na Nigéria os exploradores são pessoas muito ricas que gastam milhões todo ano pagando gente jovem para ficar online defendendo o governo. Em uma situação de pobreza é possível manipular as pessoas facilmente. Então pagam essas pessoas para defendê-los. O cenário das redes sociais no meu país é realmente perverso. A mídia social te dá liberdade pra vender coisas, vender música, se promover. É uma ferramenta de promoção, não de mudança. Porque é manipulada por quem tem mais dinheiro. Se eu tiver 1 milhão de dólares pra gastar em publicidade, eu lanço uma música e posso pagar o YouTube pra ter 2 milhões de views em 3 dias. Wow! Tudo é influenciado pelo dinheiro, não existe igualdade na mídia social. Não há uma plataforma em que você tem as mesmas oportunidades do que os outros se você for bom o suficiente. Ok, talvez em alguns casos as pessoas recorram às redes e consigam fazer algo acontecer. Eu já fiz isso antes, não é impossível. Estou fazendo ainda. Mas isso porque as pessoas conhecem a música, a história que está por trás, eu posso impulsionar as coisas. Eu entendo o papel que as redes sociais podem ter nas manifestações populares, mas há espaço pra melhorar, para que as pessoas sejam realmente ouvidas, para que as visões sejam entendidas do jeito que elas são – não empurradas como propaganda, da forma como é feito nas mídias sociais.
Como os jovens podem fazer a diferença na sua opinião?
Não adianta se conectar pelas redes sociais, você tem de começar a se conectar fisicamente também. As organizações não podem depender das mídias sociais – acessar um link e dizer “sim”, assinar uma petição online. Não. As pessoas também precisam sentar, conversar por horas, compartilhar ideias e chegar às soluções. É assim que as coisas são feitas. Eu não acho que o Lula, quando estava tentando criar o partido dos trabalhadores aqui no Brasil, iria às redes sociais para criar uma petição. Havia encontros que duravam 20 horas, pessoas brigavam, se reconciliavam, as ideias iam rolando, e isso é o que está faltando ao movimento hoje. As pessoas hoje querem as coisas rápido. Digitam no Facebook, protestam por uma semana e fica tudo bem. Não é isso. Você não precisa protestar, você precisa organizar. Sentar, se encontrar pessoalmente. Não só com pessoas da sua região, mas em todo o mundo. Ir ver como as coisas em que você acredita afetam outras pessoas e pensar em como chegar às soluções. Isso é o mais importante.
Falando sobre o seu novo disco: por que chamou Robert Glasper para ser produtor?
Ele é um grande músico, fez o disco do ano (“Black Radio”, 2013, vencedor do Grammy na categoria “Melhor Disco de R&B”) e produziu vários artistas de quem eu gosto. Nos meus dois álbuns anteriores eu trabalhei com bons produtores, mas dessa vez, pra mim, não era só uma questão de produzir. Eu já tinha escrito as músicas e queria trabalhar com alguém que desse um toque extra, um músico que trouxesse a sua própria “vibe” para o disco. Além de ser um grande cara, o Robert é um ótimo pianista. Foi bem diferente de trabalhar com o Brian Eno [“From Africa With Fury: Rise”] ou o Martin Meissonier [“Many Things”].
O álbum tem participação do rapper de Gana Blitz the Ambassador. Qual é a sua opinião sobre o rap feito hoje em dia? Existem bons rappers na África, além do Blitz?
Há bons rappers no mundo todo, mas não no mainstream. Eu não vejo mensagens positivas vindo do rap mainstream. Esse tipo de rap promove a liberdade, mas que tipo de liberdade? Liberdade individual. A liberdade individual é muito fácil. É a liberdade de gastar o seu dinheiro da maneira que quiser, falar com seus pais da maneira que quiser, comer quantas mulheres quiser, mandar seus fãs se foderem, dizer que não podem ter a sua mulher. Isso é liberdade fácil. É fácil pra qualquer um, você não precisa ser uma grande pessoa pra transmitir esse tipo de conhecimento. O rap mainstream não ajuda a promover a verdadeira liberdade comunitária, que une as pessoas para dividir o seu sofrimento, que não fale só sobre como gastar o seu dinheiro, mas sobre como assegurar que a comunidade tenha uma voz, que inspire a comunidade. Essa é a liberdade do povo, uma ideia coletiva. Minha música é para o meu povo, para enriquecê-lo e dar poder a ele. Isso é o que está faltando no rap mainstream. Mas eu conheço bons rappers do underground. Além do Blitz, tem um cara de Londres, branco, chamado Fliptrix. Vi recentemente os caras do… Como é mesmo? Cypress Hill. Droga, quando você fuma, você esquece o nome de todo mundo.
Há algumas bandas no Brasil que são fortemente influenciadas pelo afrobeat, como Bixiga 70 e Abayomy. Você já as ouviu?
Já ouvi falar do Bixiga 70, mas encontrei o pessoal do Abayomy, assisti ao show deles. E conheci a festa Makula. É interessante, sabe? Acho que o afrobeat, por causa das ideias do Fela, não é só um conceito africano, é uma ideia global, de que qualquer pessoa pode se expressar. Essa ideia global que eu falo é de que a música deve representar o povo, deve falar das verdades, sobre o que está acontecendo com as pessoas. A música deve inspirar as pessoas a quererem se unir, e não se separar. Porque eu acredito que a música mainstream hoje, como eu disse, encoraja apenas a liberdade individual, de pessoas que querem mostrar o quanto são diferentes de seu próprio povo. Ela faz as pessoas acreditarem que têm de avaliar suas vidas pelas suas posses, pelas coisas que elas têm – o tamanho do seu carro, da sua casa. É por isso que o afrobeat é tão popular e tão inspirador, porque fala de tentar conseguir um emprego, dos salários baixos, de quanta merda as pessoas têm de aguentar de seus chefes. Aí você ouve o rap mainstream e eles mal respiram, só falam de matar negros.
Você recorrentemente cita Gilberto Gil como um artista brasileiro que admira. Você o conheceu pessoalmente? Quais outros artistas brasileiros você conhece e gosta?
Eu quase encontrei com ele duas vezes. Encontrei Carlinhos Brown no Rio de Janeiro. É meu amigo brasileiro. Tocamos ao vivo juntos, ele foi ao meu show. É um cara legal.
Você conhece a música de Jorge Ben?
Ouvi falar de Jorge Ben. Ele é ok. Bem… A música do Brasil que eu gosto está mais ligada à minha cultura. A música feita em Salvador, Bahia, de Gil, Carlinhos Brown, que é mais percussiva. Quando digo que o Jorge Ben é ok, ele é um ótimo músico, mas não vem dessa raiz.
O que acha que de um brasileiro (Pedro Rajão) estar fazendo um documentário sobre Fela Kuti (“Anikulapo”)?
Bom, eu preciso ver o filme pra dizer. Pedro esteve na minha casa. Acho que ele está fazendo um bom trabalho. Muita gente da minha tribo, da tribo de Fela, foi trazida para o Brasil na época da escravidão. Definitivamente, do ponto de vista humano, a conexão está aí.
(Por Lígia Nogueira e Ramiro Zwetsch)
(Fotos: Daniel R. N. Lopes)
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