Suspiros musicais
Está no ar desde ontem o link para download gratuito de “Paraíso da Miragem”, o primeiro disco solo do baiano Russo Passapusso — integrante da banda Baiana System, do coletivo Ministereo Público e do Bemba Trio. É uma beleza! As letras desvendam versos arrancados das profundezas da intimidade do autor ou de sua sagaz observação como cronista urbano, a voz apresenta recursos melódicos que vão além do seu já reconhecido e enorme talento como MC, os arranjos são de um capricho notável (assinatura de Curumin, Lucas Martins e Zé Nigro, com direito a sample malandríssimo de Airto Moreira), o trabalho traz várias participações (Anelis Assumpção, B-Negão, Edgard Scandurra) e as influências evocam a diversidade do que a música brasileira nos proporcionou de melhor nos anos 70 — de Clube da Esquina a Antônio Carlos & Jocafi. Enfim: coisa fina. Em abril, tivemos o privilégio de trocar uma ideia com ele sobre o trampo. Confira a entrevista e fique ligado no show de lançamento (dia 11 de setembro, no Sesc Vila Mariana)!
Como foi sua busca por esse trampo?
Não fui bem eu que busquei esse trampo, foi ele que me buscou. Porque eram músicas antigas da história de vida que eu estava passando. Essas músicas me usavam pra ter um desabafo da história e todas são relacionadas com fatos. Elas voltaram. Eu vim pra São Paulo pra fazer uma participação no disco do Guizado e conheci o Curumin. Eu já conhecia ele da internet, ouvia o disco dele, gostava muito da forma livre e leve dele de compor com as mesmas referências, inspirações, essência. E quando eu cheguei aqui, em um ensaio pro show, ele falou: “vamos almoçar lá em casa”. Foi aquilo: comecei a ter essas lembranças lá, toquei a música “Passarinho” e ele gravou no disco dele. Eu falei, “tenho umas músicas”; e ele: “vamos gravar”. A gente teve uma relação muito forte, familiar mesmo, e começamos a gravar. Eu não tinha plano nenhum de fazer um disco. Na real, essas músicas eu não ia gravar, elas eram pra ficar dentro da minha casa, sabe? Eu estava trabalhando com música em Salvador de outra forma. Eu estava trabalhando, vindo do Ministereo Público, sintetizando a coisa do canto falado — porque eu não sou bem do rap, mas eu gosto de lidar com as coisas do repente e do canto falado a partir dos riddims jamaicanos. Então esse disco me encontrou. São músicas que voltaram pra mim; eu vim pra São Paulo e gravei em 24 dias. Foi uma coisa sem nenhuma pretensão. Curumin falou: “vamos gravar independente de qualquer coisa, independente de fazer show”, porque a gente gostava muito de estar ali no quintal dele tocando. De repente, passou no edital da Natura. Aí foi aquele choque total e a gente se concentrou mais. Curumin gravou “Passarinho” e a primeira que eu gravei na casa dele foi “Flor de Plástico”.
Sobre o que fala “Flor de Plástico”?
É uma música da falta, meu pai faleceu e fiz. Foi a primeira música que veio completa pra mim. Eu não sei nada sobre notas, andamento, essas coisas todas. Fico tremendo com isso quando encontro os músicos no ensaio, é um terror. Como em Curumin eu encontrei uma coisa mais leve, tocando no quintal, com filho nascendo, eu me senti muito à vontade. Depois, eu reconheci “Flor de Plástico” como um hino; minha família tem uma formação, vem do interior; eu nasci em Feira de Santana, tive esse caminhar pelo sertão, ouvia as coisas do sertão, ia pra igreja, aquelas igrejas de roça, evangélicas e lá eu ouvia os hinos. Hoje eu faço a leitura desta música mais de fora, porque eu gravei… A gente via sempre como uma música alegre, mas é uma música sobre a morte. Foi a falta, meu pai faleceu. Foi muito lindo porque eu sentei do lado da cama… Depois que meu pai foi enterrado… Quando eu ficava sozinho com ele, eu tocava violão, tocava nada, ficava só “bleim-bleim-bleim”, ele ficava na cadeira de balanço, “lindo, meu filho, muito lindo”. Quando ele faleceu, eu fui pro lado da cama, vesti as roupas dele, tinha um jarrinho ali do lado da cama e a melodia veio, a música saiu toda. Ali eu vi que eu era instrumento de alguma coisa. Depois eu mostrei essas músicas pra algumas pessoas em Salvador, que tinham uma sensibilidade maior — algumas compreenderam e outras não. A grande maioria não conseguia captar isso e eu comecei a sair pra rua pra fazer outro tipo de música. “Flor de Plástico” é isso, tem essa relação com a morte, aquele sorriso que você dá… Você chora, chora, chora e depois: “ahh, ele tá livre”.
Você se preocupa sobre como Salvador vai receber seu disco?
Os tambores, a indústria do axé, a luta que a gente tem lá pra se firmar, os preconceitos, a educação, a política, o social, a raça, o religioso, o sincretismo… Tudo isso eram coisas que abalavam o disco. Eu sofri pra caralho. Eu falei: “não vou lançar em Salvador”. Primeiro porque eu tive muitas críticas realmente, de colocar pra alguns amigos meus escutarem e a coisa não ser compreendida. E eu fiquei com medo de colocar as músicas em certos contextos. Já pensou colocar “Flor de Plástico” num lugar que… Eu vi isso acontecer em Salvador. Eu fui tocar com o Dubstereo certa feita e a mina que foi tocar lá no Teatro Castro Alves, a Soko… As pessoas não conseguiam ouvir ela, porque precisava ter um certo respeito pra ouvir aquela música. Eu vi as pessoas vaiarem ela, essa coisa bem carnal que tem em Salvador. Em Salvador, eu canto gritando, “Flor de Plástico” é um falsete. Eu ainda não estou me sentindo confortável. Não entendo como isso vai funcionar, mas estou muito seguro pelas coisas que estão acontecendo aqui em São Paulo e pelas pessoas que tem sensibilidade em Salvador. Eu já posso dialogar; anteriormente não: era eu na minha casa, comendo carne de sol, trabalhando em telemarketing ou sebo de disco, não tinha como entrar nesse parâmetro. Eu não tenho nada traçado, vou deixar acontecer, mas preciso de um contexto confortável pra tocar feliz essa música em Salvador. Eu respeito e amo muito Salvador, embora eu exploda com todas situações e viva gritando lá. Baiana System é um grito com guitarra baiana e delay.
Você se sente mais confortável em apresentar esse trabalho em São Paulo?
Sinto porque São Paulo tem o Brasil inteiro. Em Salvador, eu não pego o violão.
Mas você compõe como, no violão?
Eu componho no violão. Hoje em dia, por esse lance de ir pro Salvador e não poder pegar o violão, eu comecei a compor inspirado na música de Batatinha que diz, “eu que não tenho violão, faço samba na mão”. Quando eu ouvi isso, falei, “vou fazer música sem violão, que dica”. Consegui fazer duas músicas sem violão.
Essa coisa de ter um começo de trajetória ligado às rimas e depois lançar um disco com melodias, remete um pouco à história do Criolo. Você reconhece essa similaridade?
Ah, cara, a primeira vez que eu ouvi o Criolo, falei: “graças a Deus”. Esse lance de ser música. Na Bahia, é mais impregnado a coisa do preconceito. Eu acho, posso estar errado. Quando ele rompe isso, quando ele canta “Não Existe Amor em SP”, quando ele compõe melodia e mostra que tudo é música, ele deu um alívio pra muita coisa. Eu me encaixo bem nisso. Eu tinha muito preconceito com minha música, não queria colar música rimada dentro desse disco. Eu comecei a perceber essas coisas dentro de mim. O mercado vai caminhar pra unificação e compreensão da coisa como música e não como nicho, “é rap, ou é samba, ou é rock”. Essa coisa que tá vindo misturada naturalmente vai ser bem compreendida; são canções, música popular brasileira, vem do urbano, da roça, da capital, do interior. Não deixa de ser uma anarquia. Começa em um caminho, quando entra no estereótipo, quebra-se tudo naturalmente. A música não consegue se prender a estereótipo, ela mesmo faz isso nas pessoas e se implode. Aí quebra: o MC que é cantor, o cantor que é MC, faz samba, faz rock e é música. Eu acho que o Criolo é o cara que fez isso e graças a Deus ele conseguiu. Eu fiquei com medo, da Bahia, dessa coisa ser malvista, de não ser compreendida pelos rotuladores.
Mas você segue paralelamente com seus outros projetos em que você canta rimando, certo?
Isso foi o que me fez estar aqui. Pra essas músicas do “Paraíso da Miragem” voltarem pra mim, eu tive que começar a sair pra tocar com o Ministereo Público, botar as caixas de som na rua , perder a vergonha de cantar, botar o delay. Esses grupos da Bahia vem da minha convivência. O Bemba vem da convivência com o Fael e o Raiz. O MiniStereo também veio disso, da galera se encontrando lá em casa, junto com a organização de Dudu Caribe, de Edbrass, das pessoas que eram os caras que compravam os discos. O Ministereo Público começou tocando música nacional, depois mudou pra coisa de tocar reggae porque os discos tinham o grave muito bom e o lado b tinha essas instrumentais que dava pra cantar em cima. Eu percebi que uma música saiu no suspiro da outra. Eu valorizo, não quero sair de Salvador jamais.
(Por Ramiro Zwetsch)