Instinto selvagem

Sun Ra completaria 100 anos hoje (22/05/2014) e seu legado permanece como um dos mais impactantes na história do jazz! Sua contribuição foi muito além das inovações técnicas e conferiu ao gênero boas doses de psicodelia, espírito coletivo e criação instintiva! Leia!

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Há muito, muito tempo, antes dos palcos para shows, antes de Bach, antes do músico e do público, antes dos álbuns ou estúdios de gravação, antes de existir um mercado e bem antes da profissionalização, existia apenas a música: sons de tambores primitivos, cantos de chamado e resposta, vozes coletivas que evocavam um deus ou uma cura, que espantavam medos e doenças e celebravam a vida. O tempo passou e a maneira tribal de se enxergar a música ficou relegada a uma categoria de amadorismo, ou pelo menos não muito séria do ponto de vista de um profissional. Saber tocar, cantar, ter voz boa, afinação, enfim, se tornaram conceitos indispensáveis, relegando a manifestação musical apenas a quem “tem talento”.

Porém, há gente, que mesmo com talento, desafiou essa ordem. Sun Ra completaria 100 anos hoje (22/05/2014) e, apesar de suas indiscutíveis técnica e criatividade como músico e compositor, ele foi um dos homens que devolveu ao mundo “profissional” essa ancestralidade.

Nascido em 22 de maio de 1914 e morto em 30 maio de 1993, o pianista é um dos artistas primários da história do jazz — tão fundamental quanto John Coltrane, Louis Armstrong, Miles Davis, Charles Mingus, Thelonious Monk, Albert Ayler ou Charlie Parker. Pode-se dizer que ele é um dos fundadores de toda uma linhagem, que renderia frutos dentro e fora do gênero, tanto em orquestras modernizadas e de vanguarda ao exemplo da que ele montou, quanto em grupos coletivos, até em músicos individuais que exploraram o afrofuturismo tão propagado pelo compositor.

Batizado de Herman Poole Blount por causa de um mágico de shows de vaudeville chamado Black Herman, era natural de Birmigham, Alabama, mas quando criou sua persona passou a dizer que na real tinha vindo de Saturno. Começou sua carreira tocando na banda de um professor, mas logo se destacou e formou seu primeiro conjunto com os músicos que já o acompanhavam, ainda nos anos 30. A essa altura existia somente Sonny Blount, que só se tornaria Sun Ra no final da década de 40, após uma “viagem ao planeta Saturno”. A tal saga marcou tanto o músico que, além de mudar o nome, ele também começou a formar o que seria uma orquestra astral, a Arkestra. Vivendo em Chicago, Sun Ra foi pioneiro ao fundar seu próprio selo, batizado de Saturn.

Sun Ra e sua Arkestra permaneceram na cidade de 1945 a 1961, período em que ele desenvolveu a sonoridade própria e influenciou praticamente todo o mundo jazzístico local. Sua formação e atuação coletiva estabeleceu parâmetros para a formação das importantes associações culturais que começaram a surgir na cidade e se espalharam por todos os EUA nos anos seguintes, misturando, em muitos casos, ativismo negro e música.

Lendários músicos de Chicago passaram pela sua banda e essa experiência inspirou o surgimento de entidades como Phil Cohran e sua Artistic Heritage Ensemble, a AACM – que projetou grupos como Art Ensemble of Chicago e Air, além de nomes individuais fortes como Anthony Braxton — ,  The Pharaos, Pieces of Piece, e outros. Até hoje o eco saturniano de Sun Ra retumba no Hypnotic Brass Ensemble, banda dos filhos de Phil Cohran.

A fase seguinte da Arkestra se deu em Nova York, praticamente até o final dos anos 1960. Nesta época, a música e o valor teatral da banda já haviam sido absorvidos por bandas de outros gêneros como Frank Zappa and Mothers of Invention, MC5 e Parliament / Funkadelic, que transpunham alguns conceitos de Sun Ra para o rock e o funk. É nesta década que Sun Ra grava, com alguns de seus músicos, o seu disco de “rock de garagem”. O espetacular “Batman and Robin” é atribuído a The Sensational Guitars of Dan & Dale, mas na verdade é uma parceria entre integrantes da Arkestra com a banda Blues Project, do versátil Al Kooper (sabe aquele som de órgão de “Like a Rolling Stone”, de Dylan? Pois bem, é dele).

De 1968 até sua morte, a terra de Sun Ra foi a Filadélfia. Durante os anos 1970, ao mesmo tempo em que influenciava, seu som era também influenciado. Discos como “Lanquidity” trazem um groove que faria bonito em qualquer banda de funk psicodélico. Ainda durante esta fase, ele gravaria seu disco mais conhecido, “Space is the Place”. Como um mantra, é cantado até hoje por todos os músicos nas apresentações da Arkestra (ainda em atividade), sejam ou não afinados, chamando para a celebração da música onde não há divisão entre público e artista: o ritual é para todos.

(Por Alê Duarte)

>> Ouça nossos dois podcasts sobre Sun Ra:

– Sobre os 40 anos de “Space is the Place”, gravado em 2013:

– Sobre sua obra, inspirado no show da Arkestra, em São Paulo, em 2012:

>> 21 álbuns remasterizados de Sun Ra disponíveis no ITunes: www.itunes.com/sunramusic

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  1. Space is the place | Radiola Urbana - [...] disco é bastante inspirado no universo musical do Sun Ra, daí vem o “space”, mas também tem outras coisas…

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