40 anos à frente
Arquivo RU: aproveitamos o lançamento de um dos melhores discos de 2014, “Jaiyede Afro” (Orlando Julius + Heliocentrics), para republicar nossa entrevista com o veterano músico da Nigéria. Leia!
A Radiola Urbana já escolheu um dos seus discos preferidos de 2014: “Jaiyede Afro”, que registra o encontro do veterano músico nigeriano Orlando Julius com a banda britânica Heliocentrics — que em 2009, já havia gravado com a lenda etíope Mulatu Astatke, no disco “Inspiration Information”. O trabalho reúne antigas músicas do compositor e saxofonista, algumas nunca gravadas, em arranjos que reverberam uma modernidade respeitosa aos pilares do afrobeat. Além de oito composições próprias, o disco traz uma versão de “In the Middle” (James Brown).
A gravação acrescenta mais um registro no histórico de referências entre o nigeriano e o norte-americano. Os dois se conheceram no final dos anos 60 em uma das turnês de Brown pela África e, segundo Julius, tiveram uma noite regada por música, cerveja e erva. Após o encontro, o africano gravou “James Brown Ride On”, que celebra aquela experiência. Alguns anos antes, nos anos 60, ele lançou a faixa “Ijo Soul”, que tem elementos que soam como referências explícitas a “I Feel Good”. Julius alega, no entanto, que sua música é anterior a de Brown.
Aproveitamos o lançamento de “Jaiyede Afro”, para republicar uma entrevista com Orlando Julius — cortesia de Kristopher Rios para Radiola Urbana, no já distante ano de 2007. O músico fala sobre a troca de figurinhas com James Brown, reivindica a criação do afrobeat e lembra do começo da carreira nos anos 60.
Como começou sua carreira musical?
Meu nome é Orland Julius Ekemode, mais conhecido como Orlando Julius. Comecei a tocar quando ainda estava na escola, no ensino fundamental/básico. Eu era uma dos músicos da banda da escola. Tocava bateria, corneta… naquela época tocar corneta não era tocar um som pesado. Eram músicas marciais. Também toquei flauta doce. Foi divertido. Não terminei a escola porque naquele ano perdi o meu pai, a escola parou de funcionar, por isso eu saí e não terminei o secundário. Decidi ir para a cidade. Eu cresci no sudoeste da Nigéria, mas fui para Ibadan. Era uma cidade grande, a maior naquela época. E a primeira TV Africana ficava em Ibadan. O primeiro estádio de futebol foi construído em Ibadan. E o primeiro-ministro incentivava as artes. Não havia música nas escolas naquela época, assim o primeiro-ministro tentava organizar diferentes programas, apoiando as escolas de arte. Mas por ser apenas um primeiro-ministro regional, teve dificuldades para encontrar apoio. Por isso, o partido dele tinha uma banda. O nome da banda era Palm Tree (Palmeira), que eles usavam como símbolo. O secretariado do partido era tão grande que eles tiveram de conseguir instrumentos para 30 bandas diferentes. Ele empregava bandleaders que tocavam diversos instrumentos. A banda do partido era como uma escola. E foi onde eu aprendi a tocar de ouvido. Nós não aprendíamos a ler música. Mas foi muito interessante. Todos os instrutores nos ensinavam de ouvido. Foi só muito tempo depois que eu aprendi a ler e escrever música. Tive sorte porque consegui ser voluntário para escrever as partes de alguns instrumentos e de várias sessões do grupo. Tinha que escrever para todo mundo: metais, percussão, cordas. Eu não recebia nada por isso mas foi assim que aprendi a fazer arranjos. Depois disso, comecei a trabalhar com diversos artistas. Isso era por volta de 1958. Eu fiz uns backings para Eddie Okonta. A banda dele se chamava Top Aces. Era uma big band…de verdade. Antes disso eu toquei em bandas pequenas. É interessante como você começa a tocar num ano e no seguinte já está numa big band. Para mim foi um milagre. Ter talento é uma coisa e aprender a tocar é outra. Você pode ir para a escola e estudar música, aprender a tocar um instrumento e levar uns dois anos até você começar a ficar bom. Para mim levou apenas um ano. Logo depois montei minha primeira banda, Modern Aces. E foi apenas em 1962 que ela engrenou e em 1963 fomos contratados pela gravadora Phillips Records. Na época, eles começavam a divulgar lançando um single ou um EP. A maioria, 45 polegadas. Em 1963, as coisas começaram a andar. Gravamos o primeiro compacto naquele ano. O diretor da Phillips, não o estrangeiro, mas o diretor nigeriano, deu um empurrão em nosso primeiro single ,“Jaguar Nana”, mas a gente não foi pago por ele. O diretor disse que era um teste para ver como nos saíamos comercialmente. Assinamos um contrato. Disseram para nós que se as pessoas gostassem da nossa música receberíamos alguns centavos para cada single que a gente fizesse depois desse. E minha primeira música foi um sucesso.
Você fazia música highlife?
Sim, mas a minha Highlife era moderna. Tinha um beat mais africano. Naquela época muitos grupos Highlife tinham um som parecido, usavam os mesmos acordes. Por isso, eu decidi rearranjar minhas músicas para que soassem mais modernas.
Quais eram suas inspirações?
Eu ouvi muito jazz. Ouvi Coltrane, Parker – os grandes. Ouvia isso e pensava que seria legal fazer o meu Highlife com um tom mais jazz. Eu queria que cada música fosse totalmente diferente, não queria que soassem do mesmo jeito. Queria usar padrões diferentes para cada música. Ali por 1965, minha banda já tinha experimentado tudo isso.
O seu grupo teve sucesso só na Nigéria ou em todo o Oeste da África?
Bom, nós queríamos muito viajar, mas na época, não tínhamos dinheiro. Fazíamos mais sucesso na Nigéria. Eu estava interessado em funk e tentei incorporá-lo na minha música também. Os grupos que tocavam na Nigéria não tocavam apenas highlife. Muita gente pedia para tocarmos música mais sentimental.
Música Sentimental?
É: r&b, tango, jazz, blues, foxtrot, valsas, todo tipo. Muitos estrangeiros vinham aos nossos clubes e quando tocávamos covers de músicas norte-americanas, eles ficavam felizes. Foi assim que aprendi diversas técnicas musicais. Você não vê artistas norte-americanos tentando tocar música africana. Não há uma demanda por essa música lá fora. Mas na Nigéria aprendemos a música norte-americana porque os estrangeiros queriam. Mesmo sabendo que deixávamos de tocar a nossa música, isso nos ensinou a melhorar a nossa música. Otis Redding me inspirou a escrever “Ijo Soul.” Quando ele morreu na queda daquele avião (em 1967), nós ficamos muito tristes na Nigéria. Escrevi uma música chamada “Soul Man is Gone”. Se você escutasse ficaria surpreso. Esse Highlife moderno que nós fazíamos eu decidi denominar mais tarde de afrobeat.
Então o afrobeat foi uma evolução do Highlife?
Foi sim. O afrobeat é mais pesado do que o highlife. Tem uma batida mais forte. Eu fazia isso antes que Fela (Kuti) fizesse a música dele.
Conte-me como você conheceu Fela.
Havia essa escola de música na Nigéria. Fela teve que ir à Grã-Bretanha. Ele deveria estudar medicina, mas acabou entrando na Trinity School of Music. Enquanto ele estava na escola, eu já tocava com a minha banda. Fela voltou do Reino Unidos em 1965. Naquele ano eu tinha lançado meu primeiro LP, o “Super Afro Soul”. É o mesmo álbum que foi relançado em 2000 pela Strut. Quando Fela voltou para casa, ele trabalhava na (rádio) Nigerian Broadcasting Company (NBC). Ele era DJ da emissora e formou um grupo de jazz chamado Jazz Preachers. Ele tocava trumpete, tinha Bayo Mathis na bateria, Art Alade nos teclados e eles se denominavam Jazz Preachers. Isso foi em Lagos. Mas mesmo que Lagos fosse a capital, não era um lugar tão agitado quanto Ibadan. O grupo dele tocava em Lagos, mas ele vinha a Ibadan toda sexta-feira para ver o que acontecia. Ibadan era a meca musical da Nigéria. Ele vinha a diferentes clubes em Ibadan e trazia o trumpete. Ficava ao lado do palco e tocava trumpete perto das bandas que se apresentavam. Muita gente não gostava e pedia para ele sair. Ele logo comprou um silenciador pra tocar sem incomodar as bandas. Quando ele vinha ao meu clube, no Independence Hotel, eu o trazia ao palco e o apresentava como meu convidado. Ele adorava. Aí ele tirava o silenciador e começava a tocar. Ele era muito bom e gostava do jeito como eu tocava sax. Na verdade, imitou meu estilo no trumpete por um tempo até que, finalmente, começou a tocar sax tenor. Ele tinha uma boa técnica, mas o tom era terrível. Já eu, tenho um bom tom. (Risos) Foi assim que eu e Fela nos tornamos bons amigos. Quando ele começou o grupo Kola Lobitos, que tocava menos jazz e mais a moderna highlife que eu fazia, ele ficou com quatro dos meus músicos do Modern Aces. Isso foi por volta de 1966, 1967.
Fale um pouco sobre o relançamento do “Super Afro Soul”.
Eu tenho uma história interessante sobre isso. Lembro que havia esse homem mais velho que vinha sempre ao Independence Hotel. Ele era um ator tinha voltado depois de trabalhar na Inglaterra e nos Estados Unidos. Era aposentado, tinha uns 82 anos e trabalhava em Ibadan: Orland Mathis. Ele tinha atuado em muitos dos grandes westerns e vinha sempre ao Independence Hotel. Um dia veio ao nosso ensaio para ver a gente tocar. Saiu da mesa, caminhou até o palco e nos fez parar. Disse: “Rapazes, parem!!! Vocês não sabem o que estão fazendo!!!” Todos ficamos assustados. E ele disse: “Vocês não sabem o que estão fazendo. Essa música é maravilhosa. Vocês estão 40 anos à frente do seu tempo. Ótimo trabalho. Mantenham-se assim.” E “Super Afro Soul” foi relançado exatamente 40 anos depois. Quentin Scott (da gravadora Strut) me ligou e disse que queria relançar o disco. O engraçado é que eu até mandei meu trabalho mais recente, mas ele disse: “Não. Nós queremos ‘Super Afro Soul’”. Depois de “Super Afro Soul”, eu fiz mais dois discos pela Phillips: “Orlando’s Ideas” e “Psychedelic Afro Show”. Meu contrato com a Phillips era de 10 anos. Normalmente o contrato é de cinco anos, mas fui forçado a assinar um de 10. Tudo o que eu fiz entre 1963 e 1973 pertenceu à Phillips e eu nunca vi um centavo daqueles discos. Foi só quando Quentin relançou “Super Afro Soul” que vi algum dinheiro daquele trabalho. Eles me pagaram 6 mil libras adiantado pelo material. Eu nem acreditei! Em 1974, com o final do contrato com a Phillips, eu decidi sair da Nigéria e fui para os Estados Unidos trabalhar com Hugh Masekela. Arranjei, escrevi e produzi umas músicas para ele. Escrevi “Ashiko” que foi um grande sucesso no oeste da África.
James Brown veio aqui duas vezes, não foi? Ele veio por causa da gravadora Phillips ou algo diferente? Vocês se encontraram?
Sim, eu encontrei com ele em 1969, quando veio com sua banda ao meu clube. A Phillip Morris tinha bancado uma turnê e eles trouxeram James Brown à Nigéria. Eles vieram de Lagos para o meu clube em Ibadan. Veja só, o pessoal da Phillip Morris frequentava o meu clube. Eles gostavam das garotas que apareciam no Independence Hotel. James Brown estava com (o baixista) Bootsy Collins, (o vocalista) Bobby Bird, (o apresentador) Danny Ray e Johnny Free. As coisas não foram muito bem para eles em Lagos. Eles foram ao clube de Fela e ouviram um monte de merda. Fela disse que James Brown estava tentando roubar a música dele; acusou-o de usar um relógio de pulso com um gravador. Quando chegaram no meu clube, ficaram surpresos. Se no Afrospot (clube do Fela) a experiência foi péssima, no meu clube eles tiveram a melhor noite da vida deles. Beberam muita cerveja nigeriana — não em latas pequenas como se bebe nos Estados Unidos; nós temos garrafas de pouco mais de um litro e vendemos barato. Também pediram maconha para uns caras que fumavam. Na Nigéria o fumo é muito bom, por isso, como eu era o único que não fumava e não bebia, no final da noite tive que levá-los de volta para casa. E eles não lembravam onde era o hotel. (Risos) Bootsy estava atrás e dizia, ”Oh, cara, vocês são maus!” E quatro dos caras que tocavam comigo não entendiam a gíria e perguntavam: “porque eles dizem que somos maus?” Bootsy teve que explicar: “não, não é mau. É Superbad… sabe como é que é? Soulful.” (Risos) Eles se divertiram muito; o tocador de conga não queria voltar. Queria ficar na Nigéria. Eu o mandei de volta com uma cópia do “Super Afro Soul” e nós ficamos em contato. Eu me lembro de receber cartas do cara dizendo como sentia saudades da Nigéria.
Sobre isso, há uma música em “Super Afro Soul”… “Ijo Soul”. “I Feel Good”, de James Brown soa muito parecido. Você sabe o que aconteceu?
Eu não tenho certeza, mas depois, quando escutei a música dele, achei muito parecida com a minha. Olha, eu acredito que um músico pode estar em Nova York e outro na Nigéria e eles criarem músicas parecidas. Não se pode impedir isso. Mas aquela música James Brown levou da África. Cada vez que um artista norte-americano, seja branco, negro, verde, qualquer coisa, todas as vezes que eles vêm à África, sempre levam algo para acrescentar à sua música. Muitos músicos de jazz vieram à África e aprenderam coisas aqui que foram adicionadas ao seu estilo. Por isso, eu não sei. Acho que ele levou um pouco do meu material e usou no trabalho dele.
O que você acha da atual influência da música americana aqui na África? Eu reparei que as rádios tocam muito rap e hip hop. Por quê?
Antes de eu sair daqui e ir para os Estados Unidos, a música aqui era cultural; tipo highlife e afrobeat. Quando você escutava a rádio naquela época, a música ocidental era tocada tarde da noite, quando as pessoas já estavam na cama. A nossa música tocava o dia inteiro. Quando voltei, em 1984, percebi uma mudança nessa linha. Havia mais música ocidental: disco, pop e coisas assim. Começou a ficar pior. Começaram a tirar a highlife da programação e a colocar mais hip-hop e rap. Nos clubes, começaram a exibir clipes de músicas ocidentais. Agora você tem que brigar para que toquem a sua música no rádio. Quando você vem da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos e liga o rádio, você espera escutar a música local. Tudo o que você escuta é hip-hop e rap. As crianças de hoje que ouvem rádio, pensam que essa é que é a musica deles. Eles imitam os rappers. Eles conseguem um produtor que faz uma batida e uma rima e pronto. Levam a fita ao show e não cantam mais, fazem mímica com a fita. Sabe, nossa música também pode chegar lá. A música latina se desenvolveu ao ponto de ser respeitada no mundo todo. Nós precisamos descobrir como fazer isso com a musica africana. Acho que precisamos educar nossos jovens com a música tradicional. Quando voltei à Nigéria, comecei uma projeto chamado “Fórum dos Músicos Nigerianos”. Comecei num auditório emprestado por um amigo. Trouxe meu próprio equipamento, convidei músicos e jovens a falar sobre como podemos melhorar nossa música na Nigéria. Highlife e afrobeat são a nossa música da Nigéria. Não podemos ficar copiando música estrangeira. Todos os garotos e garotas que vieram ao fórum ficaram sabendo do que precisam para ser músicos. Você precisa aprender um instrumento. Você precisa ter música nas escolas para que as pessoas possam aprender a tocar um instrumento. Não estamos dizendo para não fazerem rap. Mas façam rap na sua língua. Não dizemos para não cantarem. Mas cantem na sua língua. Façam algo novo. Chamem de afro-hip-hop. Coloquem uma conga ou um talking drum… Assim, quando você tocar, as pessoas sabem que vem da África. Nós até nos oferecemos para produzir o trabalhos deles. Eu me ofereci para pegar alguns dos CDs deles e usar alguns dos meus músicos, alguns dos meus percussionistas, para fazer um som mais original. Isso é o que eu fazia antes de sair da Nigéria. Espero que eles entendam que precisamos construir a nossa própria identidade. Não apenas fazer hip hop como os caras de Nova York. O pessoal de Nova York até quer fazer um som parecido com os africanos. (Risos) Os africanos vão esperar Bennie Man ou 50 cent ou aquele outro? Sabe, o “Mr. Lover, Lover. Mr. Bombastic”?
Shaggy?
É, Shaggy. Eles vão esperar até que esses caras façam música como a nossa e fazer dela algo grande. É por isso que a minha música ainda está por aqui hoje. Porque é original. É isso. Ok, eu entendo… é difícil competir. Na minha música eu tenho um pouco de jazz aqui, um pouquinho de funk ali. Mas a espinha dorsal ainda é o highlife, ainda é africana. Peguei o jazz, o funk, mas transformei-os na minha música e quando as pessoas escutam, dizem: “isso é da África”.
E ninguém duvida da origem do afrobeat.
Ninguém. Não há dúvidas. A batida estava lá antes de ser colocada no afrobeat, é o highlife. É nosso, mesmo que eu utilize músicos de jazz nas percussões. Talvez digam que estou copiando a música norte-americana, mas quando escutam o ritmo sabem de onde vem. O ritmo é a espinha dorsal, é o que faz a música. Por isso, as pequenas coisas que você copia daqui e dali não importam, porque quando eu uso o ritmo africano, o som se torna único.
Não é imitação, é interpretação?
Exatamente. Eu acho que a garotada de hoje precisa compreender a importância de aprender um instrumento. Como é que você diz que é musico se não consegue tocar música? Precisam aprender música para saber de verdade o que estão fazendo. Não espere por um produtor que lhe traga uma base sequenciada para cantar. Não. Aprenda música. Conheça as suas raízes. Eu fico tão feliz cada vez que ouço a música de Porto Rico, de Cuba, até mesmo dos brasileiros. Consigo ouvir que eles não esqueceram suas raízes. Não. Esquecer as raízes é esquecer todos aqueles instrumentos. Eles sabem de onde vieram. Tocam suas congas, suas percussões e sabem que vieram daqui. Vieram da África.
(Por Kristopher Rios)
(Tradução: Cláudia Erthal)
(Introdução: Ramiro Zwetsch)