1 ano sem Peter King

Ilustração: Lucas Viotto

O ataque dos metais não amolece em nenhum momento. A bateria também é espancada sem massagem. A faixa é semi-instrumental: praticamente não tem letra, a não ser pelo grito de guerra que clama por “freedom” (liberdade) em alto e bom som! “Freedom Dance” é a quarta faixa do álbum “Shango”, que o saxofonista nigeriano Peter King grava em 1974, mas não encontra oportunidade para lançar. O trabalho permanece desconhecido do público por praticamente três décadas, quando o selo Strut Records finalmente edita uma versão, em 2002. Axé! Uma das obras fundamentais para entender o afrofunk dos anos 70 não poderia ficar no limbo e, para a sorte da música, as fitas originais da gravação dormiam intactas sob a cama do músico.

“Shango” foi reeditado uma vez mais em 2013, pelo selo Mr. Bongo. “Freedom Dance” se destaca naturalmente pelo grito de liberdade que ecoa como um lema de campanha pan-africanista dos anos 70, quando a maioria dos países do continente africano conquista suas independências. “Watusi” encerra o repertório com a mesma contundência, inspiração e estrutura: um petardo instrumental sustentado pela veemência dos sopros que só alivia na hora que vem o berro de “Watusi” – que, segundo consta no texto de contracapa das edições da Strut e da Mr. Bongo, se refere à luta pela libertação de Angola; o país é declarado independente em novembro de 1975.

Outra pancada é a faixa-título. “Shango” celebra o orixá dos trovões e tempestades que, na cultura iorubá, é uma das principais divindades. É a única canção do álbum com letra que se desdobra em vários versos. As outras são todas instrumentais ou, caso das citadas “Freedom Dance” e “Watusi”, trazem apenas o título da música entoada em uma única frase gritada.

Os vocais de Peter King se fazem mais presentes no álbum de igual potência, “Omo Lewa”, de 1976. Este sim foi lançado na época pelo selo Orbitone Records, do produtor jamaicano Sonny Roberts, assim como outros três: “Miliki Sound” (1975), “A Soulfull Peter King” (1977) e “Moods” (1978). “Omo Lewa” evidencia uma assinatura autoral do afrofunk, com a influência do estadunidense James Brown escancarada na estrutura dos arranjos – principalmente nas levadas de guitarra, que fazem mais ritmo do que harmonia.

Peter tem King no nome, mas não nega a realeza de James. “A influência mais forte na Nigéria e em toda a África nos anos 70 foi James Brown”, diz no texto de contracapa de “Shango”. “Da Nigéria até a África do Sul e o Quênia, ele reinou de fato. Dá para perceber quando a música feita na África começa a mudar. Ele fez alguém como Fela Kuti repensar seu trabalho e se dedicar à música séria. James Brown ajudou muito. Ele nos influenciou na reorganização de nossa música e nos incentivou a fazer algo único.”

Não foi só com James Brown que Peter King aprendeu. Nascido em 1939 em Enegu, região leste da Nigéria, ele se interessa por música desde os seis anos. Aos 20 anos, muda-se para Lagos e toca na banda do lendário Victor Olaya, mestre do highlife que também teve na sua banda a dupla dinâmica do afrobeat – além de Fela, o baterista Tony Allen. Aos 23, vai à Inglaterra para estudar música e seu talento se potencializa. Em Londres, ingressa na Trinity School of Music. Faz também dois cursos de férias na prestigiada Berklee College of Music, onde estuda arranjos, orquestrações e composição.

Quando forma a banda African Messengers, sua música ganha solidez e algum destaque na Inglaterra – tanto que chega a dividir o palco com lendas do jazz como os saxofonistas de jazz Dexter Gordon, Roland Kirk e Sonny Rollins. O combo, inclusive, alcança a façanha de ser convocada para ser a banda de apoio de artistas estadunidenses da ascendente soul music em turnê pela Inglaterra, como The Four Tops, The Temptations e Diana Ross. A identidade do compositor e instrumentista nigeriano começa a se forjar e sua criatividade e inspiração explodem nos álbuns “Shango” e “Omo Lewa”.

Para celebrar o legado do artista, que partiu em 29 agosto de 2023, preparamos esta playlist com dez das nossas faixas preferidas entre as 15 que compõem o repertório dos seus dois discos mais clássicos. É pedrada do começo ao fim! Salve!

(Por Ramiro Zwetsch)

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