Um rapper budista
Gostar de rap sem desprezar o rock, descobrir afrobeat, mergulhar no reggae e no soul, ficar obcecado pelos títulos da Blue Note… Os Beastie Boys foram um guia nesse caminho percorrido pela Radiola Urbana e a morte de MCA não poderia passar em branco. Leia a íntegra desta entrevista com ele, que Filipe Luna fez para a Trip, junto com o parceiro Bruno Torturra, em 2006 — poucos dias antes dos shows que o trio fez no Tim Festival (no Rio de Janeiro e em Curitiba), dois dos melhores de nossas vidas. Ele fala sobre cinema, budismo e a morte.
Os Beastie Boys foram os Beatles de grande parte de uma geração. É evidente que eles não tem o mesmo significado para a história da música pop que a banda de Liverpool. Mas, se os Beatles foram a obsessão e, principalmente, a educação musical de uma geração inteira nos anos 60, é exatamente isso o que os Beastie Boys representam para a Radiola Urbana. Ouvir música se tornou uma experiência diferente depois de escutá-los pela primeira vez. Comprar música também. Eles não tinham limites para o que podiam samplear ou usar numa música, valia absolutamente tudo. Era uma obsessão desgraçada, que consumia tardes e viagens a lojas de discos (isso tudo aconteceu antes da internet se tornar a fonte principal de pesquisa musical). Cada sample novo descoberto era uma realização em si. Soul, afrobeat, trilhas de blaxpoitation, música latina, reggae que não terminasse em Marley, Jimmy Smith e Blue Note, pós-punk e até nomões do rock como Bob Dylan e Led Zeppelin. A expansão do gosto musical da Radiola Urbana e de muita gente foi seriamente influenciada pelas referências apontadas pelos Beasties. “Paul’s Boutique” (1989), o segundo disco deles, foi o cúmulo. Este álbum é em si uma tese revolucionária em composição musical com samples, o disco que veio do disco, pura e simplesmente. Eles tiveram a cara de pau de samplear os próprios Beatles!
Quando se trata dessa banda, a Radiola Urbana não consegue ser minimamente imparcial. Por isso, era inacreditável estar em Nova York, em 2006, numa calçada da Canal Street com o amigo Bruno Torturra, apertando a mão de Ad-Rock e o acompanhando até o estúdio deles, no último andar de um prédio de escritórios. A missão era entrevistá-los para a revista Trip, para a capa da edição de outubro daquele ano. Foram três dias lá, entrevistando-os separadamente, por cerca de uma hora cada, além de acompanhar a sessão de fotos (eles foram clicados pela incrível Maya Hayuk). A estratégia de separá-los era para evitar a notória hostilidade bem-humorada deles com a imprensa. Uma entrevista com todos juntos rapidamente se transforma num brainstorm de piadas prontas, em que o alvo é sempre a credulidade do repórter. MCA foi o último a conceder entrevista, num sábado pela manhã. Ele foi de skate ao estúdio e jogou a chave do último andar com um pára-quedas improvisado. Sem sombra de dúvida, foi o que nos deixou mais à vontade durante a conversa. Os outros dois foram incrivelmente simpáticos, mas MCA era o único que parecia despido da persona “artista entrevistado”.
Não se trata de uma distinção entre os três, porque isso, para um fã, é como escolher entre o pai ou a mãe. Mas, como personagem, Adam Yauch certamente foi o mais interessante dos Beastie Boys. Ele era o símbolo da mudança de comportamento da banda: dos dias de cerveja, pênis infláveis e go go girls no palco, até os Tibetan Freedom Concert, o budismo e as brigas com o Prodigy por causa de letras sexistas. O personagem de Nathaniel Hornblower, o pretenso cineasta suíço que ele personificava, e os sensacionais clipes da banda tem o dedo de Yauch, um fanático por cinema que se tornou diretor nos seus últimos anos. Aliás, era esse o assunto principal da entrevista. A banda estava para lançar o filme “Awesome, I Shot That”, em que 50 fãs filmaram a apresentação dos Beasties no Madison Square Garden, em Nova York. Na entrevista que a gente republica aqui ele fala de cinema e fala de morte também. Afirma que não tinha medo dela, mas não queria morrer de câncer ou de outra forma sofrida. Que merda.
Como começou a se interessar por filmes?
Eu não sei. Há muito tempo eu sou ligado nisso. Na escola eu era ligado em fotografia, fazia animações. Quando a banda começou eu já filmava e editava em Super 8 e projetava no fundo do palco. Eu comprei uma câmera de VHS assim que saiu no mercado.
O filme de vocês estreou em cinemas. Você tinha visto um show em um cinema?
Acho que Woodstock, Monterrey… mas na verdade eu nunca os vi no cinema. É meio estranho porque muita gente na platéia não sabe bem o que fazer. Um começa a dançar, mas fica sem graça e para. Outros batem palmas entre as músicas. É algo entre as duas coisas.
Vocês sempre disse que queria fazer um filme com a banda. Como essa idéia especificamente surgiu?
Foi bem simples. A gente não queria filmar um show apenas, e eu tinha recebido um email de um fã com um trechinho de um show nosso filmado do celular. Ficou muito legal, dava pra ver as cabeças das pessoas, tudo tremido. E alguma coisa no jeito que foi filmado dava a sensação de como era estar lá mesmo. Então pareceu uma idéia boa documentar assim o show. Se você me perguntar, eu sempre me interessei mais por filmes narrativos. Roteiros mesmo.
Você tem um roteiro já?
Sim, estou atrás de financiamento. É sobre grafiteiros de 1981 em Nova York. O filme se passa numa época que o departamento de transporte começava a reprimir os grafiteiros de escrever nos trens. É sobre essa época, esse mundo, essa cultura.
Com a banda?
Provavelmente sozinho, talvez com eles ajudando na trilha. Se eles quiserem seria legal.
Quando a gente veio aqui estávamos com um pouco de medo porque vimos alguns vídeos e vocês sempre zoam a imprensa…
Vocês foram bem espertos de nos separar [risos].
É, essa foi uma das razões porque separamos vocês. Mas porque isso acontece? Vocês não gostam da imprensa?
É, às vezes, as pessoas simplesmente fazem perguntas que eu fico olhando: “Quem é seu estilista favorito?”. Eu penso: “Do que você está falando?” [risos]. Na verdade eu vou ter que ficar do outro lado em breve. Vou fazer um documentário sobre jogadores de basquete do colegial, vai ter um jogo entre os melhores em duas semanas num parque que chama Rucker, no Harlem. Vou entrevistar um monte dos jogadores. E passou na minha cabeça: “E se esses caras começarem a me zoar”. Agora sou eu que tenho que fazer as perguntas.
Você conhece cinema brasileiro?
Pouca coisa. Mas adorei “Cidade de Deus”. É incrível o filme. E também da versão original de “Orfeu Negro”. A trilha era fantástica.
O que você escuta de música brasileira?
Nós gostamos muito de Bossa Nova. Mario Caldato nos mostrou muita coisa: Jorge Ben, Os Mutantes, Gilberto Gil…
Agora ele é nosso ministro da cultura.
É?! Que doido.
Tem um artista brasileiro preferido?
Como que é o nome dele… “Águas de Março”, quem fez isso?
Tom Jobim.
Isso. Algumas coisas deles são as minhas preferidas. Mas, provavelmente, 80 ou 90% das músicas dele eu não consigo escutar. Tem aquelas cordas cafonas. Mas 10% das músicas dele são as minhas preferidas. Tem um disco do Gilberto Gil com o Jorge Ben, em que eles ficam improvisando, que é um dos meus favoritos.
Você conhece hip hop brasileiro?
Não muito. Tem um grupo que abriu para a gente quando estivemos lá. Acho que Mario produziu eles depois. Eu esqueci o nome, sou horrível com nomes… Era um grupo meio doido, com um monte de gente, e era uma banda mesmo, com instrumentos. (Planet Hemp abriu o show dos BB em 1995).
Planet Hemp?
Acho que sim. Tem outras coisas que eu deveria conhecer?
Sim, tem uma banda ótima que chama Racionais MC’s. E o engraçado é que um deles se chama Edy Rock, quase igual ao de vocês.
É mesmo?
Você ainda pratica Snowboard?
Não muito. Nos últimos 10 anos eu só fiz umas cinco vezes. Ainda ando muito de skate, mas como transporte pela cidade. Mas fui obcecado por snowboard. Quando nevava em algum lugar eu voava para lá. Mas parei. Acho que eu sou assim mesmo, de vez em quando encano com alguma e fico cego pra o resto.
Mas de onde veio essa obsessão, qual a sensação do esporte que te deixou viciado?
É difícil explicar. É tipo uma combinação de estar no meio da natureza, isolado, em um lugar lindo com uma descarga forte de adrenalina. E eu gostava muito da curva de aprendizado do snowboard. Um dia você não consegue e de repente dá um clique e você pode. Mas tem mesmo algo de viciante nisso. Deve ser parecido com surf.
É uma adrenalina parecida com a do palco?
Tem algumas semelhanças, mas é diferente. Porque no palco você não está arriscando a sua vida. No máximo corre o risco de fazer um papel ridículo, mas dificilmente de morrer. O medo faz a diferença na verdade.
Você tem medo da morte?
Eu tenho mais medo de me machucar seriamente do que de morrer. Eu não gostaria de ficar velho demais e ter um câncer que vai me fazer sofrer demais. Ou de perder lucidez, de não poder fazer esportes e jogar basquete. Não tenho medo, mas certamente eu não gostaria de envelhecer. Eu não deveria nem dizer isso porque muita gente passa por isso e vai ficar mal de ler. Mas acho que seria mais fácil morrer de repente. Uma vez eu estava em um avião e começou uma tempestade insana. O avião pulava, eu achava que o avião ia mesmo cair e não me desesperei. Lembro de pensar: “então é isso.”
Então você é um bom budista mesmo… Como começou a se interessar por budismo?
Eu não sei bem como foi. Mas comecei a ler uns livros sobre o assunto em 1988. Depois eu fui viajar ao Nepal um dia e conheci uns tibetanos que eram refugiados que tinham viajado muito para ver o Dalai Lama. Lembro de ficar muito impressionado com eles. Isso foi 1992. Depois eu acabei vendo uma palestra do Dalai e foi indo assim.
Mas quando foi que começou a se dizer um budista mesmo?
Eu fiz alguns votos e “assumi” mesmo em 1996. Ser um budista é acreditar em certos princípios, tipo reencarnação, carma…
Você tem um bom carma?
Acho que é misturado. De uma perspectiva budista, eu estou resolvendo carmas em tempo infinito. E se eu não tivesse carma ruim eu seria um ser iluminado, um buda. E eu sei que ainda tenho muita merda pra melhorar em mim.
Você era um cara mais ou menos feliz antes de virar budista?
Hum, é uma boa pergunta. Porque antes eu nunca senti um vazio na minha vida, essas coisas que muita gente diz, sabe? Eu acho que há princípios no budismo que mudaram o jeito como eu exerguei o mundo. Isso é o mais importante.
O que por exemplo?
Vamos supor que algo ruim acontece. De uma perspectiva religiosa comum, as pessoas podem dizer que Deus quis assim. De um ponto de vista não religioso, as pessoas podem ficar se lamentando e perguntando: “porque tudo é tão ruim comigo”. No budismo, a gente pensa em o que poderíamos ter feito em outra vida e o que fazer para mudar essa encarnação.
Então você não acredita em sorte?
Na verdade, não.
Então você não se considera um cara de sorte, mesmo de um ponto de vista não-budista?
Não sei, acho que sim. Eu conheço tanta banda que trabalhou muito, gente talentosa mesmo que não foi pra a frente. Eu acho incrível que a minha banda esteja nesse ponto e que tivemos tanta… sorte ou qualquer nome que você queira dar.
No começo da banda vocês batizaram o disco de “Licença para Zoar” (Licensed to Ill). Isso é bem pouco budista…
Eu acho que, no começo da carreira, a gente se divertia muito testando quanta merda a gente poderia falar em um disco. Se você escuta as letras do primeiro disco a gente está falando de coisas que nunca fez: atirar em pessoas, fumar crack, estuprar gente, queimar vilas. Era quase um ponto de vista de piratas. Com o tempo a gente começou a ver fãs nossos, os não muito espertos, dizendo: “Cara, é isso aí! Vamos fumar crack mesmo, vocês são demais!” Nessa hora você precisa recuar um pouco. Claro que a gente ainda fala merda, mas a gente se sente um pouco mais responsável pelo que canta hoje.
Então vocês são pioneiros do gangsta rap?
(risos) Existe gente que falava muita besteira antes de nós. Eles nos inspiraram a ir mais longe. Mas acho que a gente infuenciou muitos rappers do gangsta que escutaram “Licensed to Ill” e pensaram: “a gente pode falar merda também!”.
Em uma entrevista você disse que ser feliz tinha mais a ver com ajudar os outros do que com ganhar dinheiro e ter sucesso…
Eu queria ver se alguém acreditava nisso (risos).
Digo isso porque a cultura que vocês representam, fora a música, tem muito a ver com marcas, consumo, roupas bacanas.
A gente não está ostentando Prada e Gucci, sabe? Quando começamos a usá-las, Puma e Adidas eram marcas quase esquecidas. A gente comprava em pontas de estoque, de tênis que estavam há anos nas prateleiras. A gente estava sendo original.
Mas essa cultura virou massiva. Essas marcas hoje são gigantes e costumam explorar trabalho infantil, dumping, propaganda agressiva. Muitos ativistas dizem que os artistas precisam se responsabilizar pelo que vestem, entende?
Eu respeito os dois lados. Todos deveriam ser responsáveis pelo que compram e fazem. Está tudo interligado mesmo. Mas no mundo hoje você tem que escolher o menor dos males. Porque é impossível levar uma vida “perfeita” nesse sentido. Exemplo: eu preciso de um telefone. Eu não sei o que a companhia de telefone faz com o dinheiro. E mesmo que eu escolha a mais “ética” delas, as corporações são todas interligadas, todos são de alguma forma sócios. Eu não uso mais Nike em fotos, eu gosto dos tênis Gravis. Mas eu não sei se eles são muito bonzinhos com seus operários. Eu acho que muitos artistas que começaram pobres e chegaram lá, hoje tem dinheiro e, sonhavam há tanto tempo com um par de Nike, que tudo bem. É difícil julgar essa pessoa dizendo que ela tem responsabilidade.
Você é budista então não pode matar nenhuma criatura, certo?
Eu matei uns mosquitos quando fui para o interior… Como carne de vez em quando. Mas um bom budista não pode mesmo matar nada.
Então como você se sente pagando impostos nos EUA?
É uma boa pergunta… Provavelmente eu deveria parar de pagar meus impostos mesmo. Eu seria preso, no entanto. A não ser que fosse um movimento mesmo, a idéia é interessante, porque esse país está realmente louco. E não sabemos muito como mudar isso.
Onde você estava em 11 de setembro?
Eu tinha acordado cedo e estava brincando com minha filha no sofá quando ouvi uma explosão. Foi o primeiro avião acertando o World Trade Center. Mas eu achei que era o barulho de escapamento de algum carro. Um tempinho depois ouvi uma outra explosão e um monte de gente berrando: “Ohhh!”. E eu: “Que diabos?”. Tinha um cara consertando nosso telhado e ele desceu e disse: “Meu Deus, que terrível, o World Trade Center está pegando fogo”. Aí a gente foi para o teto e meu vizinho me disse: “Que estranho, um prédio estava pegando fogo e o fogo pulou para o outro prédio”. Isso não era possível, os prédios ficavam tipo a uma quadra um do outro, não tinha como. E eu fiquei assistindo e depois minha mulher veio correndo e disse que um avião tinha acertado o Pentágono. Eu me lembro de ter sentido um calafrio na minha espinha quando ela me disse isso. Você se liga que algo louco está acontecendo, sabe? E daí a primeira torre caiu, eu vi caindo. Foi um sentimento meio doido. Lembro de ver a poeira vindo para nossa casa, uma nuvem enorme. E a gente viu as pessoas cobertas de poeira e cinzas na TV, então fomos para a casa da minha sogra. Minha filha tinha uns dois anos e não queríamos ela perto daquela poeira.
O que acha que mudou na cidade depois daquilo?
Mudou completamente a vibe da cidade. Todo mundo estava amistoso, ajudando os outros. E ficou parecendo um outro lugar, uma cidade pequena. As pessoas dizendo: “Oi, como vai?”. E depois foi voltando ao normal. Mas no começo se você via um avião ou sei lá, já pensava: “Ai, meu Deus!”.
Você é otimista em relação ao mundo?
Eu acho que sim. O mundo está em um estado terrível agora, mas temos que ser otimistas. Claro que é possível que muita coisa piore ainda, tanta guerra no mundo a gente pode ter saudade de 2006. Mas eu não quero imaginar um futuro pior. Só acho que as mudanças vêm devagar. Não será de repente que as pessoas vão parar de brigar ou de interromper o aquecimento global. Eu espero que meus filhos vivam em um mundo melhor.
Você é feliz?
Acho que sim. Não sei porque. Mas tem certas coisas, as principais da vida: trabalho, família, saúde, comida… tudo está indo muito bem. Então me sinto bem feliz.
(Por Bruno Torturra e Filipe Luna)
(Foto: Zé Gabriel)
*Entrevista publicada originalmente na Revista Trip, em outubro de 2006
Sem palavras, entrevista nostálgica.