Um brinde a Eric Dolphy

Leia sobre “Dolphy Series”, conjunto arrasador de 5 discos de jazz lançados pelo selo Strata East em homenagem ao saxofonista Eric Dolphy, morto aos 36 anos, em 1964: “Clifford Jordan in the World” e “Glass Bead Games”, ambos de Clifford Jordan; “Izipho Zam (My Gifts)”, de Pharoah Sanders; “Zodiac”, de Cecil Payne; e “Rhythm X”, de Charles Brackeen.

ericdolphy

Eric Dolphy morreu jovem. Tinha 36 anos quando, numa crise de diabetes, caiu em uma rua na Europa e nunca mais se levantou. O ano era 1964. Para muitos que tocaram com o saxofonista, caso vivesse mais, seria tão grande quanto John Coltrane, com quem trabalhou em alguns registros. Tocou em “Olé Coltrane” e fez os arranjos para “Africa/Brass” – primeiro disco de Coltrane pela Impulse! Records. Os dois também estavam juntos na semana antológica de shows do Village Vanguard, em 1961, que gerou os discos “Live At Village Vanguard” e “Impressions” (mais tarde todas as apresentações foram lançadas em uma caixa com 5 cds essenciais). Entre os músicos que admiravam e gravaram com Dolphy também estavam Charles Mingus, Ornette Coleman, Oliver Nelson, George Russel, Chico Hamilton, Andrew Hill, Max Roach e Clifford Brown — que, para muitos, seria tão grande quanto Miles Davis caso não tivesse morrido tão cedo também.

Mesmo com uma vida tão curta, o saxofone de Dolphy deixou marcas profundas na história do jazz. Além do sax alto, também tocava flauta e, principalmente, o clarone como ninguém. Sua música perdura e foi motivação da mais arrasadora homenagem que um jazzista já recebeu: a “Dolphy Series”.

Por trás da série está um outro saxofonista. Clifford Jordan é uma daqueles gigantes subestimados. Encoberto pela ferocidade de John Coltrane e seus discípulos, Jordan tinha um tom potente e era da mesma geração de saxofonistas de Dolphy. Menos interessado na inovação e mais no sentimento, viveu seu auge somente na década de 70, apesar de no final dos anos 1950 já ter estreado como líder em um dos grandes discos da Blue Note, o “Blowing For Chicago” – sua cidade natal. O disco ainda tem outro atrativo: traz uma rara aparição de John Gilmore, o emblemático sax tenor da Arkestra de Sun Ra, também liderando a banda.

Depois disso, Jordan continuou fazendo seus discos e tocou ao lado de muita gente boa: Horace Silver, Charles Mingus, Lee Morgan, Max Roach e com o próprio Eric Dolphy entre 1963 e 1964. Após uma dezena de álbuns próprios lançados entre 1957 e 1968, Jordan desenvolveu um som único, que aliava uma série de experiências ao lado dos músicos com quem tocou: um pouco de hard-bop, umas pitadas de avant-garde e um punhado de soul jazz.

Entre 1968 e 1972, o saxofonista não lançou nada em seu nome, mas gravou e produziu, em 1968 e 1969, as sessões que dariam origem a quatro dos álbuns que viriam a compor a “Dolphy Series” — incluindo aí a obra-prima que abre a série, “Clifford Jordan In The World”. Mesmo com as 4 faixas que compõe o disco prontas, ele teve que esperar surgir o veículo certo para que suas composições pudessem ser lançadas: o lendário selo Strata East, fundado no começo dos anos 70 pelo trompetista Charles Tolliver e o pianista Stanley Cowell.

Foi entre 1973 e 1974 que a Strata East lançou os cinco álbuns que compõe a “Dolphy Series”. Todos foram supervisionados por Clifford Jordan que, além do primeiro, assina também o último deles. Os outros três são de saxofonistas de estilos e gerações diferentes: Pharoah Sanders, Cecil Payne e Charles Brackeen. Exceto os dois de Jordan, estes três do meio já trazem um layout que os identificam como partes de uma série: capas brancas, com fotos recortadas em quadrados de todos os músicos, com os créditos e as músicas logo de cara.

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O já citado “Clifford Jordan In The World”, lançado em 1972, foi o terceiro título da Strata East e o primeiro que não era do grupo de seus fundadores, o Music Inc.. O disco tem um tom melancólico e já começa arrasador com “Vienna” — faixa mais comprida do trabalho, com seus mais de 17 minutos que remetem para um jazz mais erudito, com influência de música clássica, inclusive. Essa sonoridade permanece na curta “Doug Prelude”. O outro lado já é um pouco mais suingado, com a balançada “Ouagoudougou” e “872”, que fecha o álbum. Jordan toca com duas bandas diferentes. No lado 1 estão Don Cherry no trompete e Albert Heath na bateria, que no lado 2 são substituídos por Kenny Dorham e, dois bateristas, Ed Blackwell e Roy Haynes. Completam a banda os baixistas Wilbur Ware e Richard Davis, o pianista Winton Kelly e o trombonista Julian Priester.

Gravado em 1969 e lançado em 1973, o segundo volume da “Dolphy Series” traz Pharoah Sanders no disco “Izipho Zam (My Gifts)”, acompanhado de um time de craques do free jazz, como o guitarrista Sonny Sharrock (creditado como Sherrock), o pianista Lonnie Liston Smith, o saxofonista Sonny Fortune, o baterista Billy Hart e o baxista Cecil McBee, entre outros, além da colaboração de Leon Thomas nos vocais.

pharoahsandersizipho

O álbum abre com “Prince of Peace”, música com vocal de Leon Thomas que faz jus ao que o saxofonista gravou pela Impulse! na mesma época. “Balance”, que completa o lado, é sem dúvida uma das gravações mais barulhentas e anárquicas de Sanders, em grande parte pela contribuição da guitarra de Sharrock. O caos é instalado sem trégua em quase todos os 12 minutos de duração da faixa. No lado B, uma longa incursão de mais de 28 minutos ao que Sanders fazia de melhor. “Izipho Zam” começa com percussão e o canto de Leon, que remete a sons tribais africanos, até que os instrumentos vão entrando pouco a pouco, criando uma massa de spiritual jazz que tornam este um dos grandes momentos da carreira do músico.

Também no auge aparece o saxofonista Cecil Payne no terceiro volume da série. “Zodiac” é o grande disco da carreira do sax barítono, na época, o mais veterano dos músicos do projeto. O álbum, além da homenagem a Dolphy, também presta tributo a dois músicos que participaram das sessões de gravação e pouco depois morreram: Wynton Kelly no piano e Kenny Dorham no trompete. Completa o time Wilbur Ware no baixo e Albert Heath na bateria.

Cecil+Payne+Zodiac

Payne — que era primo mais velho do trompetista Marcus Belgrave, do incrível coletivo Tribe, de Detroit — estava na ativa desde meados dos anos 1940 e acompanhou orquestras como a de Dizzy Gillespie. Com somente 2 discos como líder quando foi lançado “Zodiac”, em 1973, mostrou que era um dos mais talentosos sax barítonos de sua geração.

Somente com composições próprias, o disco abre com uma balada arrasadora: “Martin Luther King, Jr/I Know Love”. Segue-se a balançada “Girl, You Got a Home”, um soul jazz que traz uma rara incursão de Kelly ao órgão. O lado A fecha com “Slide Hampton”, que traz Payne trocando o barítono pelo sax alto. O lado B conta com “Follow Me” e “Flying Fish” — a mais longa do álbum, um hard bop que caracteriza bem o domínio de todos os músicos, que cresceram dentro do gênero.

O quarto volume é “Rhythm X”, a estreia do saxofonista Charles Brackeen, mas também poderia ser um disco de Ornette Coleman da fase do final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Tanto que é com a banda de Coleman que o estreante toca: Don Cherry no trompete, Charles Haden (creditado como Hayden) no baixo e Ed Blackwell na bateria.

RhythmXcharlesbrackeen

Brackeen — que gravou poucos discos e acompanhou gente ligada ao avant-garde, como os bateristas Paul Motian e Ronald Shannon Jackson e o trompetista Ahmed Abdullah — é cria do free jazz, cheio de sons atonais e melodias que exigem mais de uma audição dos ouvintes atentos. Com quatro composições próprias, “Rhythm X” é disco o menos surpreendente da série, mas reflete bem a ideia de mostrar o trabalho de gente nova e talentosa ao lado dos mais experientes.

O último da série é outra obra-prima, também de Clifford Jordan: “Glass Bead Games”, gravado em 1973 e lançado em 1974. Aqui, o saxofonista aparece com um disco duplo, de 12 composições, algumas próprias, outras dos músicos dos dois diferentes quartetos que o acompanham. Um deles tem Bill Lee (pai do cineasta Spike Lee) no baixo e Stanley Cowell no piano. O outro traz Sam Jones no baixo e Cedar Walton no piano. O baterista Billy Higgins completa ambas formações.

Glass+Bead+Games

O álbum apresenta uma série de homenagens nos nomes de algumas das composições. “Cal Massey”, “Eddie Harris”, “Powerful Paul Robeson” e “John Coltrane” são algumas delas. As faixas gravadas ao lado de Bill Lee e Cowell caem mais para o spiritual jazz enquanto outras flertam mais com o soul jazz, mas mesmo assim o disco tem uma unidade que é justamente a poderosa marca deixada pelo sax de Clifford Jordan. Se em “In The World” ele soava mais intimista, aqui ele expande seu som e traz uma obra fundamental dentro do gênero na década de 1970, fechando a “Dolphy Series” como seu homenageado merece.

Durante as sessões que originaram os quatro primeiros volumes da série, mais 2 discos foram gravados: um do baterista Ed Blackwell e outro do baixista Wilbur Ware. Ambos não foram lançados na época e vieram a público somente em 2013, no caixa de CDs “The Complete Clifford Jordan Strata-East Sessions”, lançada pela Mosaic – um selo especializado em luxuosos (e caros) boxes. Já os discos da “Dolphy Series” de fato, da Strata East, jamais foram relançados. Mas a busca pelos LPs originais vale cada centavo e tempo gasto: a recompensa é reveladora.

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