Sem tropeço
O passo é torto mesmo: caiu na rede o terceiro disco da banda Passo Torto, “Thiago França”, o primeiro em parceria com a cantora Ná Ozetti. O título, uma contradição planejada, presta homenagem ao saxofonista que é parceiro dos integrantes mas não participa deste projeto específico. Aceite o mistério.
O passo é torto mas o rumo é adiante: a voz lapidada e rica em recursos — que integrava o seminal grupo Rumo e conduz uma carreira sem aceitar o caminho fácil desde os anos 80 — confere uma beleza nova à estrutura inventiva e meio neurótica da banda que, nos dois discos anteriores, tinha suas letras entoadas pelas vozes masculinas dos quatro integrantes (Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e até Marcelo Cabral, a partir do segundo disco — “Passo Elétrico”, de 2013); todos são bons intérpretes, mas nenhum deles tem uma super-voz, e nos dois discos anteriores elas funcionavam como elementos que se enquadram no todo como mais um detalhe em meio à teia que combina caos e doçura; Ná é diferente, é uma voz mais potente, mais versátil, mais protagonista, um passo à frente.
O passo escreve certo por linhas (cordas) tortas: é intrigante tentar decifrar os códigos que combinam tão surpreendentemente as guitarras de Dinucci e Campos; esse emaranhado de tensão e delicadeza que já surpreendiam em “Passo Elétrico”, ganharam nova dimensão em “Encarnado” (de Juçara Marçal, lançado no ano passado) e agora seguem em um rota embriagada, em um estranho caminho em que distorções, dedilhados e riffs são o atalho para uma invenção pura, despretensiosa, áspera, sem exibição, imperfeita até, que desafia o ouvinte, embaralha os signos do rock pelas mãos de dois cabras que são íntimos do samba; já são três discos em que esse diálogo se intensifica e até aqui consegue se manter instigante sem temer o perigo eminente da repetição e do desgaste — em “Thiago França”, além da elegância do baixo de Cabral e do timbre de Ná, o violão de Romulo também contribui para a expansão dessa sonoridade que intensifica o agudo, o tenso e o perturbador.
O passo é torto mas o papo é reto: toda a ousadia da musicalidade encontra na poesia sua melhor morada, em letras cinematográfica, que contam histórias, propõe reflexão e pensam sobre o que for: a cidade, o cinema, a morte. O passo é firme e forte, rápido e rasteiro — e não tropeça.
(Por Ramiro Zwetsch)