Rotações afrobaianas
O encontro dos tons jazzísticos com os ritmos afrobaianos rende grandes momentos no disco “Goma-Laca – Afrobrasilidades em 78 RPM”, que pode ser baixado de graça na internet. Resultado de uma profunda pesquisa dos jornalistas Ronaldo Evangelista e Biancamaria Binazzi no acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, do Centro Cultural São Paulo, o álbum apresenta releituras de canções originalmente registradas nos antigos discos que giravam a 78 rotações por minuto entre as décadas de 20 e 50, época em que a música popular brasileira começou a ganhar corpo. Aqui, não se trata apenas de um compilado de recriações, e sim de trazer à tona um repertório distante, como diz a dupla de idealizadores, “no relógio e no mapa”. É o caso, por exemplo, de alguns dos primeiros temas de candomblé lançados em disco, como cantos para “Exu” e “Ogum”.
Não à toa a escolhida para dar voz às duas faixas foi Juçara Marçal, que além da interpretação impecável demonstra segurança e domínio ímpares ao cantar em iorubá, idioma falado na parte oeste da África. Por outro lado, ao longo do disco surgem trechos de temas populares já relidos, como “Cala Boca Menino”, incluída no cultuado álbum “Quem é Quem” (1973), de João Donato. Mais uma vez a integrante do Metá Metá é acionada, desta feita para um interessante dueto com o cantor Russo Passapusso, membro do Baiana System e que está lançando agora o seu primeiro trabalho solo, “Paraíso da Miragem”. A nova versão do clássico ganha aqui o fraseado malemolente do músico baiano, que acrescenta trechos de uma canção sua, “Paraquedas”, fazendo a ponte perfeita entre as gerações. Passapusso também improvisa e inclui citações de outra música de sua autoria, “Ponte de Safena”, na faixa “Batuque”, lançada em disco em 1929 pela cantora e folclorista pernambucana Stefana de Macedo.
Outros dois cantores baianos foram escalados para participar do projeto. Karina Buhr, que lançou nos últimos anos dois elogiados trabalhos solo depois de uma década no grupo Comadre Fulozinha, e Lucas Santtana, que lança agora “Sobre Noites e Dias”, seu sexto disco. Karina empresta seu timbre inconfundível a “Minervina”, “Guariatã” e “Do Pilá”, abrindo espaço, nesta última, para um elegante solo de piano. Santtana, por sua vez, aparece em “Passarinho Bateu Aza” (assim mesmo, com “z”), “Vou Vender Meu Barco” (gravado como samba-jongo em 1946) e a embolada cheia de humor “Não Tenho Medo Não”.
Ícone da música afrobrasileira, o maestro, compositor e arranjador Letieres Leite, da Orkestra Rumpilezz, é quem assina a direção musical e os arranjos, feitos sob medida para o encontro com cada músico. A banda que toca em todas as faixas reúne Gabi Guedes (percussão), Hercules Gomes (piano elétrico), Marcos Paiva (contrabaixo) e Serginho Machado (bateria), além do próprio Letieres, que toca flauta, atabaque, agogô e gã.
As 11 faixas evidenciam, do início ao fim do repertório, uma tradição popular riquíssima, além de mapear a cena musical contemporânea, colocando figuras-chave desse cenário em um novo contexto, mas que ao mesmo tempo se interliga com o trabalho autoral de cada um. O primeiro volume do projeto, que gerou show em 2011 mas não foi lançado em disco, teve direção musical do saxofonista Thiago França, que recebeu, à frente do grupo instrumental Sambanzo, nomes como Emicida, Marcelo Pretto, Luisa Maita, Bruno Morais, Rodrigo Brandão e Juçara Marçal.
Ao que tudo indica a goma-laca, material que era misturado à cera de carnaúba para dar origem aos discos de 78 RPM, ainda pode dar pano pra manga.
(por Lígia Nogueira)
*Esse texto foi publicado originalmente no Guia da Folha: Livros, Discos, Filmes, edição de setembro