Realismo fantástico
Tão longe, tão perto: a movimentação geográfica motiva e define a música do compositor e cantor paulista Rodrigo Campos. Seu segundo disco, Bahia Fantástica (previsto para o primeiro trimestre de 2012), surgiu de uma inspiração improvável – um lugar distante, praticamente desconhecido do músico, uma ficção de cartão-postal. É a história inversa de São Mateus Não é Um Lugar Assim Tão Longe, de 2009. As canções narram experiências vividas de fato durante a infância e juventude no bairro periférico de São Paulo: a morte de amigos, a sinuca da quarta-feira etc. Mesmo assim, o distanciamento foi importante – só depois que se mudou para Pinheiros é que as composições começaram a brotar. “Eu já tinha saído de São Mateus, mas a sensação ainda era muito viva porque eu compus essas músicas no primeiro momento que eu saí de lá. Comecei um processo de lidar com aquela saudades, com aquela distância. Eu estava tirando São Mateus de dentro de mim”, elucida Rodrigo.
Estranho no ninho, sem família nem namorada e tampouco amigos mais próximos, o período que sucedeu o lançamento do primeiro disco foi de uma certa depressão criativa. “Eu percebi que ainda saíam coisas sobre São Mateus, mas de um jeito mais subjetivo. Eu não queria mais falar da periferia de um jeito tão cronológico”, lembra. “Só que eu não sabia que isso era um disco ainda, eu só estava compondo e tal. E aí eu fui pra Bahia.” A viagem foi rápida, uma semana e meia. Foi o suficiente para interferir profundamente no processo criativo de Rodrigo. “Sempre tive preconceito com isso. Minha atitude como músico sempre foi aproximar aquela música que eu gosto do meu cotidiano. Às vezes eu via esse movimento de sambistas que moravamem São Mateusfalando da Lapa, de não sei da onde… ‘Porra, os caras moram aqui e ficam falando da Lapa’. E de repente me vi falando da Bahia.”
Esqueça a Bahia de Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Carlinhos Brown. Ela virou do avesso sob a leitura de Rodrigo Campos – compositor de São Paulo, 34 anos vividos entre a cidade de Conchas e dois bairros da capital. Ele não passou mais do que dez dias intensos na terra de João Gilberto e voltou impregnado. “Isso foi em dezembro do ano passado. Fiquei 10 dias no quarto do Vinícius de Moraes, na casa dele, do jeito que era. Uma mulher comprou a casa e a incorporou ao hotel dela. E manteve o quarto do jeito que era, a mesma disposição dos móveis, muito louco: a banheira dá pra uma sacada e você enxerga o mar. Dei o maior rolê, nunca tinha ficado tanto tempo na Bahia. Aí quando voltei, a primeira música que eu fiz foi essa: ‘daqui pra lá num vá dizer, que a Bahia não lhe achou’”.
O músico conta e canta Cinco Doces – faixa que tem todo jeito de primeira do repertório do disco Bahia Fantástica, previsto para o começo de 2012 e que, pode apostar, será lembrado como um dos melhores do ano que vem. O Caderno 2+Música acompanhou a mixagem do trabalho e o conjunto de 12 canções impressiona. Vindo de um comentado disco (São Mateus Não é Um Lugar Assim Tão Longe, de 2009), a lente de Rodrigo mudou completamente o foco e o enquadramento. Antes as composições eram sambas que vinham da experiência biográfica dos três aos 26 anos no bairro periférico da zona leste paulistana – com lugares, memórias e personagens com seus nomes reais. Agora, as letras são delírios sobre um lugar mais imaginado do que vivido; o cavaquinho – tão presente no primeiro disco – ficou em casa e o compositor levou pro estúdio referências do soul norte-americano – sobretudo de Curtis Mayfield e da banda Funkadelic – e uma banda formada por cinco integrantes que, além de excelentes instrumentistas, são também compositores e arranjadores: o guitarrista Kiko Dinucci, o saxofonista Thiago França, o baixista Marcelo Cabral, o baterista Maurício Takara e o tecladista Maurício Fleury. O time completo ainda tem Gustavo Lenza e Romulo Fróes como produtores.
“Nesse disco, todos os riffs base já vinham do meu violão, eu já compus pensando em riffs de soul. Só que eu não sou do soul, então sai outra coisa, naturalmente. O soul é uma sensação”, explica. “Todas as levadas já vinham definidas no violão, mas o disco não soaria tão coeso se não fosse essa banda, todo mundo compondo junto os arranjos. A gente ensaiou e veio tocar, isso que você ouviu é todo mundo tocando junto.” O que antes era documentário em forma de samba, agora é ficção de groove coletivo – mas ainda é cinema, marca indelével da narrativa do compositor.
Entre um disco e outro, Rodrigo Campos também experimentou uma solidão nunca vivida nos tempos de São Mateus. Morador do bairro de Pinheiros há dez anos, ele se separou da cantora Luisa Maita logo depois do lançamento do primeiro CD. “Desde que eu tinha saído da casa dos meus pais, sempre tive namorada. Foi a primeira fase da minha vida que eu realmente fiquei só e, então, eu pensei muito na morte”, explica, rindo, bem resolvido com o assunto e reconciliado com Luisa – sua acompanhante, inclusive, na viagem à Bahia. “Quando eu virei adulto, não acreditava em mais nada – paraíso, reencarnação. Comecei a encarar a morte assim: ‘um dia vou morrer e é isso, o tempo que eu tenho é esse e pronto’. Quando pintou o assunto, eu sabia que não daria pra narrar como no primeiro disco, que é meio crônica. Bahia Fantástica é todo sensorial, todo subjetivo, tentando falar sobre o incompreensível. Houve uma busca pela subjetividade, mesmo tendo personagens”. E cantarola os primeiros versos de Aninha, que começa num clima soturno antes de refogar num calor reggae: “‘Ana vai morrer em 10 Minutos / Sobra pra contar tempo de Ana / Ana vai morrer, não tem problema / Todo fim de tarde, Aninha morre’. Como que é isso, ‘morrer todo fim de tarde’? Essa morte é metafórica.”
A morte é metafórica, o groove é coletivo, o soul é uma sensação, a Bahia é imaginária – mas nada é mais fantástico do que o próprio resultado do trabalho. Escoltado por uma banda tão inspirada quanto colaborativa, Rodrigo Campos aprimorou seu processo criativo e elevou ainda mais o seu já alto nível de composição. Bahia Fantástica é um disco para se aguardar e muito em 2012.
Time afiado
Em time que está ganhando, não se mexe. É mais ou menos essa a ideia da banda formada por Rodrigo Campos, que juntou músicos já entrosados por tocarem juntos uns nos trabalhos dos outros. Olho no lance: quatro desses músicos participaram de Nó na Orelha, o ultra-comentado disco do Criolo; dois integram o Metá Metá, quatro deles compõem o Passo Torto, dois fazem parte do trio instrumental MarginalS, três tocam no quinteto Sambanzo – todos projetos que se destacaram em 2011; a formação ainda inclui o tecladista e um dos principais compositores do Bixiga 70 e o baterista da banda de Marcelo Camelo, que também lançaram trabalhos elogiados neste ano. Só craque – tanto que todos estamparão a capa e assinarão juntos a produção de Bahia Fantástica.
“O Rodrigo montou um time somente de músicos criadores, deu liberdade para criarmos em volta de sua canção e seu violão. É um trabalho corajoso, pois vai no sentido contrário de São Mateus Não é Um Lugar Assim Tão Longe”, diz Kiko Dinucci, guitarrista do trabalho. “Eu fiz uma espécie de direção musical. Como eu não toco nenhum instrumento no disco, eu acompanhava de fora as idéias criadas por todos eles, dando palpites, sugerindo outros caminhos, sempre a partir dos apresentados por eles. Todo o processo foi essencialmente colaborativo”, acrescenta Romulo Fróes, que também lançou seu quarto disco em 2011, Um Labirinto em Cada Pé – outro com participação de vários destes músicos, inclusive o próprio Rodrigo Campos e seu cavaquinho deixado de lado em Bahia Fantástica.
“Esses músicos são compositores e arranjadores, eles têm seus trabalhos próprios. Não dá pra chamar o cara e falar: ‘vai lá e toca isso’”, arremata Rodrigo. “Teve composição minha que eu levei pro ensaio e não funcionou, então eu voltei com outra ideia. Esse processo influenciou até nesse sentido, de eu mudar uma parte da minha composição. O Kiko fazia linhas de guitarra que eram composições embaixo da minha composição. O Takara cantava frases pra todo mundo tocar. E até hoje ninguém perguntou nada sobre cachê– e não vai ter”, conclui, às gargalhadas.
Rodrigo Campos: integrante do Passo Torto, instrumentista que participa em Nó na Orelha (Criolo) e Um Labirinto em Cada Pé (Romulo Fróes)
Romulo Fróes: integrante do Passo Torto e autor de Labirinto em Cada Pé
Kiko Dinucci: integrante do Metá Metá, do Passo Torto e do Sambanzo
Thiago França: líder do Sambanzo, integrante do Metá Metá e do Marginals, toca em Nó na Orelha e Labirinto em Cada Pé
Marcelo Cabral: baixista e produtor de Nó na Orelha, integrante do Passo Torto, do Sambanzo, do Marginals, toca nos shows do Metá Metá e do Romulo Fróes
Maurício Takara: líder do projeto M.Takara, integrante do Hurtmold, do SP Underground e da banda de Marcelo Camelo
Maurício Fleury: tecladista e compositor do Bixiga 70, integrante das bandas de Junio Barreto e Lucas Santtana
Gustavo Lenza: co-produtor de Sou Suspeita. Estou Sujeita. Não Sou Santa (Anelis Assumpção), produtor de A Curva da Cintura (Arnaldo Antunes, Edgard Scandurra e Toumani Diabaté) e responsável pela mixagem dos discos da Céu e do Curumin que serão lançados em 2012
*reportagem publicada originalmente no Caderno 2 + Música, do Jornal O Estado de São Paulo, edição de sábado, 17/12
(Por Ramiro Zwetsch)
(Fotos: José de Holanda)
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