O esporro que precede o silêncio

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É preciso ser bom de conta pra acertar quantas vezes o trompetista Miles Davis revolucionou o jazz. O músico, que aportou em plena era do bebop em Nova York, nos anos 40, primeiro mudou tudo com as gravações feitas entre 1949/50 que compõe o álbum “Birth of Cool” — desacelerando o ritmo e criando o cool jazz. Depois de cair no hard bop com seu primeiro grande quinteto, que incluía John Coltrane no sax tenor, a fórmula foi aperfeiçoada e tornada livre com o lançamento de “Kind of Blue”, em 1959.

Aí veio o segundo grande quinteto de Miles — com Herbie Hancock, Wayne Shorter, Ron Carter e Tony Willians no time. Aos poucos, com o avanço do movimento hippie e dos barulhentos anos 60, o jazz do trompetista foi se eletrificando e culminou na criação do fusion com o histórico “Bitches Brew”, de 1969.

A partir daí até 1975, o trabalho do músico ficou a cada ano mais radical. Em “Tribute to Jack Johnson”, Miles cai de vez no rock. Em “On The Corner”, ele envereda para o funk psicodélcio para mostrar suas novas influências — como Sly Stone, Hendrix e também a guinada funk de Ornette Coleman. “Evil-Live”, lançado entre os dois, ilustra bem a passagem de uma sonoridade à outra, com um magnífico – porém menos conhecido – disco gravado parte ao vivo, parte em estúdio.

Tudo isso pavimenta a revolução que resultou nos 3 discos mais radicais do músico e completaram a feroz transformação do hipster (esqueça a forma como o termo é usado hoje em dia) dos anos 40 ao hippie dos anos 70.

“Dark Magus”, “Agharta” e “Pangea” foram gravados entre 1974 e 1975 e, num primeiro momento, lançados apenas no Japão, já que foram considerados barulhentos demais para o mercado norte-americano. Enquanto o primeiro cobre um concerto no Carnegie Hall, em Nova York, os outros dois foram registrados, impressionantemente, no mesmo dia, no Festival Hall, na cidade japonesa de Osaka: um trazendo a apresentação da banda à tarde e outro com o show noturno, ambos em 1º de fevereiro de 1975.

Não é por acaso que os três discos, todos duplos, apareceram nos últimos anos da Guerra do Vietnã, quando o sonho prenunciado dos anos 1960 já estava declarado morto. É justamente um Miles caótico, barulhento, em completo contraste com o que gravou “Kind of Blue”, que surge nestes trabalhos mais radicais — como se as bombas atiradas pelos EUA durante a guerra explodissem no trompete plugado de Miles Davis e fizessem surgir ali um novo gênero, o “noise jazz”.

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“Dark Magus”, apesar de ter sido gravado em 30 de março de 1974, só foi lançado em 1977. São quatro músicas, uma de cada lado dos discos: longas, cheias de solos furiosos e guitarras, elas talvez representem o mais próximo do que seria uma gravação de Miles com Jimi Hendrix. Na banda estão nada menos do que 3 guitarristas (Reggie Lucas, Pete Cosey e Dominique Gaumont, que toca em 2 músicas), 2 saxofonistas (Dave Liebman e Azar Lawrence, também em 2 músicas), Michael Henderson no baixo, Al Foster na bateria e James Mtume na percussão. A formação consolida uma tendência de se extinguir o piano e substituí-lo definitivamente pela guitarra, um símbolo da geração roqueira e moderna, deixando claro que o antigo Miles havia ficado para trás.

Em quatro músicas longas com nomes curtos, a banda vai do funk de “On the Corner” ao rock de “Tribute to Jack Johnson” com facilidade e radicaliza a fórmula de ambos os discos. “Moja” já começa com uma bateria reta, uma batida rápida, até que entram as guitarras com bastante efeito wah-wah e o trompete de Miles rasgando tudo. “Wili” e “Tatu” seguem fórmulas parecidas, mas com muitas variações e solos selvagens de saxofone e guitarra — os sopros apontando para o free-jazz e as cordas elétricas para o rock.

A banda só aparenta dar uma acalmada em “Nne”, que fecha o disco. Ela começa violenta, silenciando em uma viagem sonora psicodélica e voltando à carga total — como que para provar que a banda não vai facilitar em nenhum momento e aquilo foi só um respiro antes do bombardeio final.  Em muitos momentos do álbum, tanto Pete Cosey quanto Miles criam efeitos sonoros eletrônicos, que apareceriam com mais evidência ainda nos dois trabalhos seguintes.

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“Agharta”, lançado em 1975, traz uma banda menor do que a que aparece em alguns momentos de “Dark Magus”. Saem Azar Lawrence e Dominique Gaumont, e Sonny Fortune toma o lugar de Dave Liedman no sax e flauta. O resto da banda se repete para tocar 4 das mais agressivas  composições de Miles.

“Prelude” começa com uma levada funk, pesada, que soa como se o trompetista tivesse composto uma trilha para blaxploitation. Logo a música ganha outros ares, com interferência de um órgão distorcido e muito feedback das guitarras de Pete Cosey (que também toca sintetizador) e Reggie Lucas, além dos solos virtuosos de Sonny Fortune e o trompete eletrificado de Miles.

Ocupando todo o lado A e uma parte do B, “Prelude” já emenda com “Maiysha”, talvez a única bossa fusion já gravada. No disco dois, estão “Interlude” e uma versão explosiva de “Tribute to Jack Johnson”, ambas cheias de efeitos sonoros que tornam o disco uma das experiências mais radicais para os fãs do trompetista, até mesmo aqueles acostumados com as experimentações do fim dos anos 60 em diante.

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“Pangea”, gravado no mesmo dia e com a mesma banda de “Agharta”, foi lançado também em 1975, e é ainda mais radical do que os outros dois. Traz apenas 2 longas músicas, cada uma ocupando um disco inteiro.

O disco 1 é ocupado por “Zimbabwe” e já começa com uma bateria rápida, roqueira. Depois, entram as guitarras funkeadas, abusando de efeitos de pedais, seguido do rasgante trompete de Miles Davis. Aos poucos, saxofone e percussão preenchem toda a música, que em seus mais de 40 minutos passa por muitas variações — de ritmo, estilo, texturas — que a tornam, por vezes, uma obra-prima do fusion psicodélico, com direito a intervenções sonoras e a vibrante percussão de Mtume.

Já no outro disco, é “Gondwana” que surge com seus quase 50 minutos. É outra viagem que começa mais meditativa, com a flauta de Sonny Fortune e uma base funk que vai lentamente crescendo e ganhando corpo. Quando parece que tudo irá explodir em mais uma onda de barulho, a banda abaixa o volume e explora uma cadência mais silenciosa. E quando o trompete de Miles entra, a música ganha ares de um jazz mais convencional. Mas não se engane, o barulho ressurge e desaparece novamente, conforme a música se aproxima do final, terminando com uma distorção de guitarra e efeitos sonoros de sintetizadores.

“Agharta” e “Pangea” marcam a despedida de Miles e sua retirada de cena que durou 6 anos, até 1981. Cansado e com alguns problemas de saúde, o gênio do jazz moderno parecia querer deixar como testamento, para esse hiato incerto, álbuns inesgotáveis, onde a cada ouvida um novo detalhe era descoberto. Conseguiu mais do que isso, já que quase 40 anos depois, qualquer um pode ser ouvido como se fosse a primeira vez.

(Por Alê Duarte)

3 comments

  1. Silverio Nery

    Bela desenterrada essa trilogia do Miles! Parabéns pelo serviço arqueológico!

  2. leonarddo

    não conhecia estes discos e ouvindo agora pelo youtube me apaixonei. doidra da melhor qualidade. valeu por apresentar essas pedras. abraço!

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  1. Cinemiles | Radiola Urbana - [...] fascinantes da música e responsável direto por algumas das principais transformações do jazz, Miles Davis será interpretado no cinema…

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