Heavy Metá
Roqueiros, tremei. Tua falta de imaginação e teus vícios encheram o saco. Agora vocês vão sentir o peso do “MetaL MetaL”. Esse é o nome do novo e segundo disco do Metá Metá – banda paulistana que estreou em 2011 e agora reaparece com aquela dose dupla de veneno que, dizem seus integrantes, tanto faz falta ao rock de hoje. ‘“MetaL MetaL’ era uma brincadeira que fazíamos quando o show do primeiro disco começava a ficar mais agressivo. Com a necessidade de gravar um disco inteiro tocado de um modo mais pesado, assumimos o nome, que carrega uma ironia sobre o que é tocar rock hoje em dia. O rock se desgastou muito, se fechou em regras, ficou careta, reacionário. Debatemos o rock como jeito de tocar, atitude, isso vai além de apenas um gênero”, explica Kiko Dinucci, guitarrista, violonista e compositor de seis das nove faixas do trabalho, três delas em parceria com Douglas Germano. ‘“Metal Metal’ tem uma sonoridade que não deixa nada a dever a qualquer som de rock que eu conheço e, além disso, tem uma atitude de experimentar, de buscar a liberdade expressiva, de deixar o groove se impor e sentir o corpo entrar no transe. Há algo mais rock que isso?”, completa a cantora Juçara Marçal.
Está dado o recado: não estamos no território do ritmo quatro por quatro ou do esquema guitarra-baixo-e-bateria cada um no seu lugar marcado. Boa parte do repertório vem de cantos de louvação aos orixás (de domínio popular ou compostos por Dinucci), a polirritmia africana é uma das inspirações, o sax faz parte da cozinha e a guitarra pode tanto batucar quanto distorcer até soar como zumbido de mau contato. E a voz é um capítulo à parte. Juçara Marçal tem algo mais ali e não é só a técnica. Se no primeiro disco do Metá Metá – e outros trabalhos anteriores – chamava atenção o dom de intercalar momentos de afinação e suavidade com uma emoção de arrepiar, agora ela também explode em berros com uma autoridade e tanto. “Os meninos brincavam que iam fazer um disco inteiro só pra eu gritar. Está aí, ‘MetaL MetaL’. É muito prazeroso exercitar esse jeito mais livre de cantar. É arriscado também. Mas eu gosto de correr riscos”.
Mais novidades surgiram de um disco para o outro. O primeiro dispensava o baixo e era baseado na trinca voz, violão e sax – bateria (Sérgio Machado) e percussão (Samba Sam) somavam-se em quatro das dez faixas. Agora o sexteto está formado com os dois ritmistas e também o baixista Marcelo Cabral, que contribui um bocado para o peso do som. “Além disso, ele cria linhas que definem bastante o groove, deixando o Kiko e eu mais livres”, explica o saxofonista Thiago França, que também acrescenta barulho, mas mais influenciado pela referência do free jazz. “Trabalho muito o lance estético de texturas e dinâmicas, às vezes até ignorando o tom em busca de algo puramente rítmico. O free jazz abriu minha cabeça pra essas possibilidades”. Outra diferença está nas seis cordas, antes somente acústicas e agora principalmente elétricas – o que remete à história pregressa do guitarrista, quando ele integrava bandas de punk rock. “A guitarra ainda está em um estágio de experimentação, procurando uma identidade que o violão já conseguiu. Apesar das limitações técnicas, ela vem ganhando um estilo próprio, punk polifônico, ‘afro noise’. É isso que estou buscando.”
A inspiração vaza nas faixas “Oya” e “Man Feri Man”. A primeira apresenta uma estrutura que é a especialidade do Metá Metá: sax, guitarra e baixo entrelaçam frases na introdução, enquanto o vocal se sobressai ao arranjo tal qual um grito de guerra. Na segunda parte, aparece o melhor “heavy metá”— uma combinação de fritação jazzística com golpes de hardcore e versos inspirados na cultura do candomblé. “Man Feri Man”, de domínio popular, surgiu primeiro no repertório do Sambanzo. A banda encabeçada por Thiago França tocou a música no show do projeto Goma-Laca, no fim de 2011 – toda a apresentação era baseada no acervo de discos 78 rotações do Centro Cultural São Paulo e esta era uma das músicas que trazia Juçara Marçal nos vocais. “O Sambanzo com a Juçara já era praticamente a mesma formação do ‘MetaL MetaL’, então foi natural. Nada foi pensado, a gente juntou as coisas que estávamos fazendo e achando legal”, lembra o saxofonista. A única diferença na formação era nas baquetas, a cargo de Wellington “Pimpa” Moreira.
O arranjo MetaL estende a letra de três frases em iorubá por um transe de mais de sete minutos levado por um riff de guitarra que fica no meio do caminho entre o pós-rock e a música africana. “Me inspirei no Mali: Ali Farka Touré, Tinariwen. Lógico que não consegui, daí saiu outra coisa”, decifra o guitarrista. A música registra Juçara Marçal no melhor de sua interpretação. “Nessas cantigas de santo, há sempre uma força tal, um jeito de se desenrolar que parece trazer junto a simbologia, o jeito de ser do orixá que está sendo louvado ali. Há um vínculo tão grande entre a cantiga, a letra, os passos de dança, os gestos, o toque do tambor que faz com que, mesmo quem não conheça o idioma, seja mobilizado por essa força”, diz ela. “Resgatei o significado completo da letra no livro ‘Cantando Para os Orixás’, de Altair B. É uma cantiga para Oxum, orixá das águas doces. Oxum é como uma mãe primordial, está ligada à sedução, à fertilidade, ao amor incondicional.”
As regravações das faixas “Rainhas das Cabeças” e “São Jorge” talvez surpreendam menos o ouvinte mais íntimo dos outros projetos dos músicos do Metá Metá. A primeira já aparecia em “Pastiche Nagô” (2008), no disco do Bando Afromacarrônico de Dinucci; e a outra foi lançada em “Padê”, projeto que reunia Juçara e o guitarrista, gravado em 2006. Ambas, no entanto, reaparecem com uma sujeira que estava escondida debaixo do tapete nos arranjos anteriores. “As originais são muito diferentes das versões que vínhamos fazendo ao vivo, sentimos essa necessidade de registrar essas novas versões, funcionam como uma polaroide desse momento”, justifica Dinucci.
Já “Tristeza Não” (Itamar Assumpção e Alice Ruiz) é a única do disco que retoma o formato de trio, a única acústica, a única que não é de autoria de Kiko nem domínio popular. A ausência de bateria e eletricidade poderia causar a falsa impressão de que é, também, a menos rock do disco. Juçara discorda. E corrige: “é a mais metal de todas! Aquele riff de violão é para sair batendo cabeça. O Ita é um verdadeiro orixá urbano pra nós.” Roqueiros, tremei: tua concepção de rock levou um coice.
(Por Ramiro Zwetsch)
(Foto: Fernando Eduardo)
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*Matéria publicada originalmente no Caderno 2 + Música, do O Estado de São Paulo, edição de 24/11/2012