Cidadã Instigada
“Delta Estácio Blues” desafia a objetividade – de quem se arrisca a escrever sobre o disco, diga-se. A crítica musical que lute. Juçara Marçal não facilita e não é de hoje. Da Barca ao Vésper, do Vésper ao “Padê”, do “Padê” ao Metá Metá, do Metá ao Metal, do Metal ao “Encarnado”, ela se transfigura e só não fica irreconhecível porque, embora a troca de figurino estético seja constante, a essência permanece irretocável. Nunca é previsível, sempre é inconfundível.
Seu recém-lançado trabalho traz no título esse cruzamento improvável entre o bluesman Roberto Johnson e a notória trinca de sambistas do Estácio de Sá (Ismael Silva, Bide e Baiaco) em mais um delírio lírico de Rodrigo Campos. Mas é preciso mergulhar bem fundo na análise para encontrar algo de blues ou samba no som que embala não só essa canção como todo o repertório. Ou melhor: não há rótulo ou gênero musical que dê conta enquadrar o disco.
Há uma textura eletrônica que estende o tapete para a cantora berrar, cantar, grunhir e sussurrar. As batidas e bases foram concebidas em colaboração com o produtor do álbum e velho parceiro Kiko Dinucci, que deixa de lado as cordas do violão e da guitarra para se debruçar sobre um arsenal de quinquilharia digital e fazer o escambau. O campo é minado, a cama é de pregos, a cidade é cinza, o vento não refresca. Tudo é tensão, urgência e grito entalado na garganta.
É possível forçar uma comparação com a neurose do rap de Danny Brown, a vanguarda de Itamar Assumpção, a barulheira do pós-punk, o jazz mais free, a inquietude de Neneh Cherry e mais uma tonelada de referências que os ouvintes e críticos tentam adivinhar. Nada disso dá conta. Cidadã instigada, Juçara distorce a voz – com os próprios recursos ou com efeitos eletrônicos – despreocupada com a pureza do timbre ou a virtuose de sua extensão vocal.
O que se pode afirmar para ajudar o leitor é que se trata de um disco urbano. Há um aroma permanente do asfalto que torra no sol depois da tempestade. Nas letras, curiosamente, o mar, o rio e o litoral aparecem de um jeito ou de outro em algumas canções. Toda essa água jorra pelos subterrâneos da metrópole, encanada ou soterrada pelo concreto. É nas esquinas, bifurcações, vielas e quebradas que a poesia escorre e inunda. Não é de beber, camará.
É de se admirar que uma cantora e um violonista / guitarrista – ambos de altíssimo nível técnico e que já se empenharam em explorar seus respectivos instrumentos além dos seus limites – agora se deixem retorcer e distorcer pelos filtros de pedais, softwares, samples e batidas eletrônicas. E é assim, emparedada por toneladas de ruídos estranhos, que a beleza das canções se impõe e a melodia prevalece. Juçara e Kiko chegaram lá. De novo.
(Por Ramiro Zwetsch)