Etiópia fantástica
Nunca 4 perguntinhas despretensiosas por email renderam tanto. Tão fim de tocar quanto de ajudar o ouvinte a decifrar sua música, o saxofonista Thiago França oferece um aperitivo do seu projeto solo, Sambanzo, com disco gravado — “Sambanzo: Etiópia” — a ser lançado em 2012. A faixa-título está inteiramente disponível para a sua audição e a Radiola Urbana recomenda atenção redobrada ao transe surpreendente que o músico e seu quinteto alcançam numa alquimia simplesmente única — ou unicamente simples. O embrião do projeto e as generosas respostas também ajudam a entender qual foi o caminho que o saxofonista percorreu até encontrar este groove e esta formação: com um disco de 13 faixas gravado em 2009 e jamais lançado, ele resolveu lançar um single de quatro músicas no ano passado — são elas que você ouve logo aí no começo da entrevista. E para sacar o ritual que a banda promove ao vivo, o vídeo lá no fim da página é esclarecedor. Finalmente: sexta-feira (18/11), a banda toca na Serralheria, como atração da festa AfroBLITZ (flyer de Maria Valentina abaixo da última resposta).
Por que “Sambanzo” e por que “Etiópia”?
“Sambanzo” é uma palavra que eu acho que criei, é a junção de SAMBA + BANZO. A tradução de banzo é a saudade que os negros (escravos) sentiam da África. Pesquisando no Google, descobri que existe uma cidade em Moçambique chamada Rio Sambanzo Pequeno. Quando criei o Sambanzo, no final de 2009, o samba era muito mais óbvio como matriz estética e melódica. Esse projeto é um desdobramento direto do meu primeiro disco, “Na Gafieira”. De lá pra cá a formação mudou bastante e o som também. Gravamos um primeiro disco, em 2009, que está engavetado por uma série de questões. As quatro faixas do SoundCloud são parte desse disco, que tem um total de 13 faixas. Escolhi essas quatro por achar que tinham mais a ver com o que a proposta se transformou pra lançar esse single.
SAMBANZO (single) by thiagosax
A música Etiópia ganhou esse nome por dois motivos:
1) a composição tem duas partes: a primeira parte é uma escala pentatônica, que é a coisa mais antiga e manjada do mundo; a segunda parte tem uma jogada com os harmônicos do sax, que eu toco como se fosse um instrumento primitivo de duas notas só. Tem a ver com a Etiópia, que é um dos berços da humanidade, um dos países mais velhos do mundo;
2) o groove ficou com um sabor meio reggae, meio Cedric Brooks, e o rastafarianismo está fortemente ligado à Etiópia.
A história dessa música é bem louca. Essa melodia eu compus há mais de 10 anos e era um funkzinho bem besta, estava completamente esquecida. Dois dias antes da gravação do disco, num show no Jazz nos Fundos, a gente estava passando o som e esse groove apareceu. Na hora me veio essa melodia na cabeça e encaixou perfeitamente. A segunda parte era um pouco diferente e eu adaptei na hora. Eu gravei no celular pra mostrar pros caras, na hora eu saquei que essa música precisava entrar no disco. (O detalhe foi que quando eu mostrei pro Pimpa ele disse: “Bem legal esse som, não conheço não. Quem está tocando?”)
Essa música é a que tem o arranjo mais coletivo, mais próximo da liberdade de tocar junto. Achei importante que o disco se chamase “Sambanzo: Etiópia” até como forma de homenagear a rapaziada que toca comigo. E é a nossa África Fantástica, a África que eu nunca fui, só conheço pelo YouTube e que a gente idealizou como a meca do suingue.
SAMBANZO: ETIÓPIA by thiagosax
É verdade que a gravação do disco rolou numa única tarde, depois de uma feijoada? Como foi que rolou essa gravação e como vocês conseguiram fazer tudo assim, numa tacada só?
A gente chegou no Plugin (estúdio do Diogo Poças, que foi fundamental pro projeto acontecer) às 11h, passamos o som e gravamos as duas primeiras. A gente parou pra comer a feijoada das 14h às 16h, voltamos e gravamos as outras cinco — tínhamos até às 19h. No dia seguinte voltei lá pra pegar os bounces. O som do Sambanzo é muito flexível, não existe arranjo nem estruturas rígidas, praticamente qualquer coisa pode acontecer, cada vez que a gente toca é única, por isso a gente foi gravando quase tudo no primeiro take. Dificilmente um take sai “melhor” que o outro, eles são únicos. Eu gosto de tocar assim. Não é todo mundo que curte ou consegue, mas pra mim é essencial. Quando você deixa o músico à vontade, livre, ele toca da forma mais natural e inspirada possível.
2011 foi um ano em que você gravou muito: como músico acompanhante, como integrante de dois diferentes trios e com o Sambanzo. Como esse trabalho se diferencia dentro dessa vasta produção?
O Sambanzo é o meu projeto solo, criei pra tocar as minhas músicas. Partiu da vontade que eu tinha de fazer uma gafieira universal (isso não é uma citação à Banda Black Rio!!!). No geral, a gafieira está ligada só ao samba, mas outros gêneros próximos são tocados com a mesma intenção, o carimbó, o forró, a guitarrada… Eu sempre achei que tudo isso cabia no mesmo balaio. Tecnicamente, é possível entender o trabalho assim: são composições simples, melodias intuitivas, rudimentares, compostas num esquema básico de “pergunta e resposta”; harmonias com dois acordes, geralmente tônica e dominante, ou até mesmo músicas com um único acorde, que o caso de “Etiópia”. E, por trás disso, muito suingue, muito veneno. Estruturas elásticas, descompromissadas, pra fazer um belo baile. Além disso, o encontro dos cinco — eu, Marcelo Cabral (baixo), Kiko Dinucci (guitarra), Samba Sam (percussão) e Pimpa (bateria) — gerou uma sonoridade única, todo mundo tem personalidades musicais muito fortes.
Além das minhas composições, eu inclui no repertório duas adaptações de pontos de umbanda, que dão a pista da espiritualidade presente nas músicas. Cada show é um ritual.
SAMBANZO- “Sino da Igrejinha” – Serralheria – SP from guito.guilhermezgarcia on Vimeo.
Só pra constar:
– gravados em 2010, lançados em 2011: “Metá Metá”, “Nó na orelha” (Criolo) e “Memórias Luso-africanas” (Gui Amabis).
– gravados em 2011, lançados em 2011: “Um labirinto em cada pé” (Rômulo Fróes) e o primeiro play do MarginalS
– gravados em 2011, pra lançar ano que vem: “Sambanzo: Etiópia”, “Bahia Fantástica”, do Rodrigo Campos, e o disco novo da CéU.
Está bom até, né?
A impressão que fica dos shows é que o Sambanzo tem um som bem aberto para várias influências, referências de muitos gêneros (brasileiros, africanos e caribenhos) e muito improviso. Onde e como se dá a unidade ao trabalho?
Eu me incomodo um pouco com a palavra “influência”, porque parece que é algo que não é seu mas que você usa mesmo assim. Tudo o que a gente faz, que a gente toca, está na nossa mão, está ao nosso redor o tempo todo. Todos esses sons estão aqui em São Paulo de alguma forma. E a gente tá expandindo as fronteiras da tribo; se antes a gente era sambista, ou forrozeiro, ou sei lá o que, a gente foi encontrando os semelhantes no meio do caminho e entendendo que pertencemos a uma tribo maior, a tribo do terceiro mundo, dos periféricos, marginais, que a gente é muito mais do corpo que da mente. A gente, eu, o Sambanzo, estamos muito mais próximo dos, rappers, dos funkeiros, da rua, dos toscos, do que dos caras que fazem a música instrumental acadêmica, higienizada, paga-pau de gringo. Tem muito improviso no som, no sentido de não ter muita coisa combinada e a gente resolver na hora, e no sentido de ter vários solos também. Nesse segundo sentido, a primeira coisa que vem à cabeça é o jazz. Eu seria hipócrita se dissesse que não é um dos meus alicerces musicais. Só que a nossa intenção de improvisar é outra. No jazz tradicional, o improviso é o momento do holofote, que o cara vai mostrar toda a sua técnica e brilhar sozinho, cada hora um. Pra gente, os improvisos têm outra intenção, mais estética do que técnica. Por exemplo: o improviso de “Etiópia”, eu faço uma coisa super besta, que uma criança talvez fizesse mas que um jazzista jamais faria. O solo tem um sabor meio oriental, destemperado, meio desafinado mesmo, que te transporta pra esse lugar — fantástico, não-geográfico. Uma coisa que eu saquei tocando, é que cada noite é de um jeito, uma música que emplaca um dia não emplaca no outro e vice-versa. O improviso serve também pra extender a música quando você sente aquele momento que não quer que acabe.
(Por Ramiro Zwetsch)
(Capa: Kiko Dinucci)
(Flyer: Maria Valentia)
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