Guizado apocalíptico
Os robôs já estão entre nós e cada vez mais manipulam nossa realidade. Verdades são ilusões. “O Multiverso em Colapso”, quinto e novo disco do paulistano Guizado, não poderia ser lançado em um melhor momento. Com uma narrativa apocalíptica e estética de ficção científica, o trabalho desenvolve uma ideia através das letras e sons que poderiam virar um roteiro de filme – na verdade, era pra ser uma HQ do coletivo Miolo Frito (que assina a capa), algo que não se concretizou pelo menos por enquanto. O sangue jazzístico do trompetista e compositor corre por uma veia roqueira, transfusão muito bem realizada pela banda base formada pelos guitarrista Regis Damasceno e Allen Alencar, o tecladista Zé Ruivo, o baterista Richard Ribeiro e o baixista Meno Del Picchia. A mão do experiente produtor Carlos Eduardo Miranda (falecido em 2017) se faz presente e há uma unidade na combinação de narrativa e sonoridade, com equilíbrio entre temas instrumentais e canções. Andrea Merkel, Ava Rocha, Lucas Santtana, Negro Léo, Romulo Fróes e Sandra Coutinho emprestam as vozes e somam-se à do próprio Guizado, dividindo assim o discurso entre vários narradores / personagens. As paisagens que se projetam na mente do ouvinte poderiam se associar com cenas de Blade Runner ou Akira, conforme sugere o release assinado pelo jornalista Alexandre Matias, mas também remetem à São Paulo de hoje: o futuro distópico é aqui e agora. Trocamos uma ideia rápida com o artista. Leia a entrevista e ouça o disco.
Por que “Multiverso em Colapso”?
A semente dessa ideia foi uma HQ chamado “Multiverso”, de Grant Morrison, que é um roteirista de quadrinhos bastante criativo e de histórias fascinantes. Ele escreveu o roteiro de um quadrinho clássico do Batman, “Asilo Arkham”, assim como “Doom Patrol” e “Os invisíveis”. Esse tema me chamou atenção e me pareceu bastante atual. Vivemos hoje uma miríade de realidades coexistentes abalando-se, ganhando espaço, conquistando sua voz. Essa “multiversidade” de ideias preocupa o sistema, que por si já é uma outra realidade coexistente e essa minoria (que representa o sistema) usa de seu poder para tentar controlar a realidade “multiversal”. Acredito que essa inevitável colisão de mundos e pensamentos seja a única e dramática forma de transformar o que era multiverso em universo novamente, gerando novos ramos de pensamentos originados desse colapso. Dessa nova realidade surgirão sempre novas pequenas realidades que passam a coexistir novamente, até que o que era universo torna-se multiverso novamente – gerando novos colapsos e assim (dessa forma dolorosa, porém inevitável) a humanidade segue evoluindo. Pensando dessa forma, procurei criar uma ideia para o disco em que fosse possível criar todo uma imaginário fantástico sobre multiversos, mas com base em uma visão do mundo real onde vivemos. Essa combinação me agrada, podemos ao mesmo tempo viajar pela imaginação e refletir sobre o mundo real.
A ideia inicial era de que o disco viesse acompanhado de uma HQ. Isso ainda pode acontecer?
Essa ideia ainda esta de pé. O grupo de quadrinistas do Miolo Frito fez a capa do single “Modern Fears”, a capa do disco, assim como toda a identidade visual do som. Eles vem trabalhando na ideia do quadrinho, o roteiro da história está pensado, escrito e esboçado. Por conta de tempo e de custos, não conseguimos alinhar o lançamento do quadrinho com o do disco, mas estamos em busca de coeditores para que no ano que vem a gente concretize essa ideia. Pra mim seria um sonho realizado, lançar a HQ “O Multiverso em Colapso”.
Até que ponto o Miranda influenciou nessa nova direção do som?
No final de 2016, eu liguei para o Miranda sondando a ideia de produzirmos meu próximo disco juntos. Eu já havia trabalhado com ele no VMB de 2011 e sabia que ele gostava do meu som. Fiquei muito feliz com o entusiasmo dele, então já no início de 2017 começamos a nos falar praticamente todo dia. O Miranda me conhecia desde o “PUNX”, meu primeiro disco de 2008. Ele soube reconhecer as referências da banda e, mais ainda, nos ajudou a entender melhor certos caminhos musicais de estilo que nem mesmo nós, por estarmos imersos na criação, não conseguíamos vislumbrar com clareza. Isso gerou mais objetividade na hora de compor e arranjar. Tínhamos de ter claramente a ideia a respeito de onde queríamos chegar, o que tinha ou não a ver com o nosso som – isso torna o processo de criação muito mais assertivo. Durante 2017, nos falávamos praticamente todo dia. O Miranda me apresentou muito som. Ele sacava as coisas que eu gostava e me apresentava referências relacionadas. Por exemplo, me apresentou o disco “Siren”, do Roxy Music, que influenciou o som do Duran Duran, banda que eu curto muito. Foi um cara fundamental.
Chama atenção também o trabalho de banda. Embora o conceito seja bastante autoral e a mão do produtor pareça também muito presente, a banda soa muito coesa. Como se construiu isso?
Antes de falar com Miranda, no início de 2016, eu reformulei a minha banda, abandonei quase que por completo minha função no grupo de controlar as programações e chamei o Zé Ruivo para essa função – que ficou com a parte de sintetizadores e piano elétrico. Pra bateria, chamei o Richard, que usa pads eletrônicos junto com a bateria normal. Foi como se eu tivesse desmembrado o lado mais sintético das programações de forma mais humana, mais tocada. O som manteve as características de timbres e o peso das baterias eletrônicas, só que respirando uma pulsação mais humana, mais de banda mesmo. Assim, conseguimos explorar mais variações de andamento e timbres. Também ensaiamos muito e tivemos alguns períodos de imersão – como o tempo em que passamos na casa do Meno Del Pichia, nosso baixista, em Bragança (o Miranda também foi com a gente nessa). Tocamos as músicas em shows e, finalmente, em maio de 2018 fizemos uma temporada no teatro Centro da Terra e entramos no estúdio da YB para gravar o disco. Isso realmente nos deu uma grande coesão, tanto que esse disco foi praticamente gravado ao vivo, com poucos overdubs.
O discurso do disco é bem apocalíptico. Ele reflete de alguma forma algo que você pense de fato sobre o mundo atualmente?
Sim, o disco tem essa carga apocalíptica, meio paranoica e frenética. São sentimentos gerados por minhas reações emocionais internas e fogem do racional. Essa visão de vida e de mundo eu busco muito na literatura: Dostoiévski, Shakespeare, Schopenhauer, Albert Camus… A força trágica, inevitável e transformadora e a busca do autoconhecimento (não mais através do amor, mas sim pela expansão da consciência) nos ajudam a entender melhor esse mundo moderno.