Negras melodias
O começo de agosto registra duas efemérides doloridas para a música negra: um ano sem Luiz Melodia (07/01/1951 – 4/08/2017) e dez sem Isaac Hayes (20/08/1942 – 10/08/2008). Afora a coincidência de datas separadas por menos de uma semana, há elementos na biografia de ambos que os aproximam. Nem seria preciso dizer, são duas das vozes mais importantes em gêneros específicos – MPB e soul, respectivamente. Curiosamente, eles já emplacavam hits antes de se lançarem em suas gloriosas carreiras-solo. O brasileiro já havia sido cantado por vozes femininas festejadas do período, antes de estrear com o disco “Pérola Negra”, em 1973: Gal Costa gravara a faixa homônima em 1971, no álbum “Gal Fatal – A Todo Vapor”; e Maria Bethânia registrou “Estácio, Holly Estácio” no ano seguinte. Já o norte-americano, antes de lançar seu primeiro disco solo (“Presenting Isaac Hayes”, de 1968), era instrumentista e compositor contratado da gravadora Stax Records nos anos 60 e dois grandes sucessos do período gravados pela dupla Sam & Dave (“Soul Man”, de 1966, e “Hold On, I’m Coming”, de 1967) foram escritos por ele em parceria com David Porter. A fama dos dois já precedia suas primeiras gravações próprias e suas estreias eram aguardadas, geraram expectativa do público e da crítica.
Melodia começou melhor. “Pérola Negra” é um item de discoteca básica da música brasileira, uma radiografia de sua personalidade artística e inspiração à vontade em uma receita pós-tropicalista em que samba, blues, soul, forró, jazz e rock convivem em harmonia. Após uma estreia pouco festejada, Isaac Hayes acertou a mão no seu segundo álbum e “Hot Buttered Soul” (de 1969) ocupa com tranquilidade um lugar no olimpo da soul music. Em um período em que o gênero preparava uma transformação profunda, o trabalho do compositor antevê o caminho que seria trilhado nos anos 70 e serve de referência para as obras-primas que outros grandes artistas gravariam pouco tempo depois. Até então muito baseada nos singles para as rádios e juxeboxes, a música popular negra norte-americana passaria por um processo de amadurecimento com álbuns que entrariam pra história com uma unidade na concepção de todas as faixas e um discurso que reverberava a tensão social das ruas. “What’s Going On” (Marvin Gaye, 1971) e “Songs in the Key of Life” (Stevie Wonder, 1976) são bons exemplos do avanço de estágio da soul music a partir de “Hot Buttered Soul”.
Outra afinidade entre ambos artistas é justamente o alto nível que atingem em seus respectivos segundo discos. Isaac Hayes lança outros ótimos trabalhos na sequência: “The Isaac Hayes Movement” (1970), “… To Be Continued” (1970), “Shaft” (1971) e “Black Moses” (1971) dão continuidade à obra com muita potência e clássicos. A faixa-título da trilha sonora do filme “Shaft” e o efeito do pedal wah-wah do riff de guitarra é até hoje um monumento da história do funk. Já a base de “Ike’s Rap” – sampleada por Tricky, Portishead e Racionais MC’s – tornou-se também uma assinatura do norte-americano para as gerações seguintes da música negra. A maturidade de “Hot Buttered Soul” como uma obra completa, no entanto, nunca mais foi alcançada. Em um período em que o que abastecia a máquina do soul music eram os hits radiofônicos de dois ou três minutos, o compositor norte-americano rompe com as regras e grava um LP de apenas quatro faixas – uma delas, “By The Time I Get To Phoenix”, com espantosos 18 minutos e 42 segundos. Já a primeira do álbum, “Walk On By”, hit de elevador do Burt Bacharach, surge em um arranjo épico, de 12 minutos. Hayes toca órgão e canta escoltado por uma banda sensação do momento, The Bar-Kays (o baterista William Hall, o baixista James Alexander e o guitarrista Michael Toles). É na combinação do entrosamento dos bons músicos de funk com a sofisticação dos arranjos de cordas que os elementos se equilibram e realçam a profundidade da interpretação do vozeirão privilegiado.
Luiz Melodia atinge um lugar parecido em “Maravilhas Contemporâneas” (1976). Assim como “Hot Buttered Soul”, o segundo LP do brasileiro antecipa algo que estaria para estourar na MPB nos anos seguintes. Depois da estreia pé na porta, Melodia se esparrama pela sala bem à vontade na companhia de músicos da Banda Black Rio – que lançaria seu primeiro disco, “Maria Fumaça”, em 1977, e se tornaria o epicentro do movimento homônimo que fez a cabeça da juventude negra e carioca no final dos anos 70. “Maravilhas Contemporâneas” contava com três integrantes-chave da Black Rio: o baterista Luiz Carlos Santos, o baixista Jamil Joanes e o saxofonista e líder Oberdan Magalhães. A presença do trio – em meio a outras feras como o guitarrista Perinho Santana e o percussionista Chico Batera – fez o tempero do soul / funk ganhar destaque na receita de Melodia em faixas como “Congênito” (do verso-mantra “Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais”), “Baby Rose” e “Questão de Posse”. Assim como Isaac Hayes influenciou Marvin Gaye e Stevie Wonder em seus movimentos posteriores ao lançamento de “Hot Buttered Soul”, Luiz Melodia acabou também por interferir nas carreiras dos veteranos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso: o primeiro reverberou a influência do movimento Black Rio na obra-prima “Refavela” (de 1977) e o segundo saiu em excursão com a banda homônima no espetáculo “Bicho Baile Show” (em 1978). O brasileiro, assim como o norte-americano, enfileira outros bons LPs a partir do segundo da carreira: “Mico de Circo” (de 1978) traz um dos seus hinos eternos, “Fadas”; “Nós” (1980) começa em clima caribenho na ótima “Ilha de Cuba”; e “Felino”, de 1983, mostra sua versão para o reggae jamaicano em “Só”. O LP de 1976, no entanto, ainda é considerado o ápice criativo do gênio.
Pra terminar, há uma feliz coincidência nas capas das duas obras-primas. Ambas trazem o intérprete em close: Melodia olha para a esquerda e sorri; Isaac Hayes abaixa a cabeça, em um movimento que destaca sua lustrosa careca, o aro dos seus óculos e as correntes que adornam seu peito. São imagens que, de certa forma, traduzem também a essência de cada um: o brasileiro expansivo, antropofágico, aberto a vários gêneros, tão festivo quanto introspectivo; o norte-americano reflexivo, à procura de uma melancolia que embeleza o soul. Salve!
*As playlists que acompanham este texto não representam uma coletânea das carreiras dos dois artistas, mas um recorte dos períodos abordados no artigo e considerados os mais inspirados da obra de ambos pela Radiola Urbana: 1969 – 1971 (Isaac Hayes) e 1973 – 1978 (Luiz Melodia). A ordem das músicas é cronológica.