Veneno no jazz vocal
Há 16 anos sem lançar um disco, Neneh Cherry está de volta. E não está sozinha. Em “The
Cherry Thing”, a cantora faz parceria com o trio de jazz escandinavo The Thing para mostrar que o exílio fez bem. Com apenas 8 canções – 7 no LP – o disco vem para honrar a fama do pai de Neneh, o
trompetista Don Cherry, e também a de seu padrinho, Ornette Coleman. A cantora aceita com
talento seus genes vanguardistas e revela uma nova forma de encarar o jazz vocal, que sempre
pareceu estagnado em cantoras dos anos 1930 aos 1970, ou em abordagens não muito ousadas de Diana Krall e companhia.
Em “The Cherry Thing”, Neneh – acompanhada do sax-barítono de Mats Gustafsson, do baixista
Ingebrigt Haker Flaten e do baterista Paal Nissen-Love – desconstrói um punhado de músicas
pop, que vão do hip-hop ao punk de garagem dos anos 1970, com o mesmo conforto em que
distorce temas de free jazz de, mais uma vez, Ornette Coleman e Don Cherry.
A química entre a cantora e a banda é o grande trunfo do disco. Neneh nasceu na Suécia, para
onde seu pai se mudou, já que seu som vanguardista sempre foi melhor aceito na Europa do que
nos EUA. Mais tarde, ela foi morar em Londres, e teve contato com bandas punk – como Pop Group e outras – que também tinham no free jazz sua grande motivação.
Já o The Thing é um trio que moderniza o free jazz barulhento em uma terra de grande
tradição nesse estilo. A Europa, desde os anos 1960, sempre esteve repleta de músicos que
tornaram o que já era radical ainda mais extremo ou até mesmo mais erudto. Na tradição de caras como Peter Brotzmann e Han Benninck de um lado e Jan Garbarek, Manfred Schoof e Jon Christensen de outro, o The Thing se situa como resultado de uma longa tradição de experimentações que acabaram criando uma linguagem própria dentro do jazz (o jazz europeu) que nunca fez feio quando confrontado com seus inspiradores norte-americanos.
Neneh Cherry acaba, portanto, circulando em um meio que ela conhece literalmente desde o berço.
O álbum tem apenas duas composições próprias: “Cashback”, da cantora, e “Sudden Moment”, de Mats Gustafsson – a primeira mais dançante, a outra climática. O resto do disco tem versões, algumas improváveis. Os grandes momentos são a beleza que vai se revelando tormentosa em “Dream Baby Dream” do duo no wave Suicide; “Dirt”, dos Stooges, que aqui perde um pouco a veia psicodélica, mas que fica ainda mais sombria do que a versão original; e o rap desconstruído de MF Doom em “Accordion”, que chega ao final atingindo um clímax surpreendente – e se mostra um veículo perfeito para Neneh mostrar sua
habilidade vocal.
“Golden Heart” e “What Reason Could I Give”, respectivamente de Don Cherry e Ornette
Coleman, vem pra confirmar, no final, que o disco é sim um trabalho de jazz vocal, uma
modernização que traz o gênero das divas do passado ao século XXI. E faz isso muito bem.
(Por Alê Duarte)