Notas cósmicas

Kelan

As palavras “mestre” e “gênio” se tornaram banais hoje em dia. São usadas para classificar muita gente que jamais teriam direito a um ou outro dos termos. Mas se há alguém que pode utilizá-los sem cerimônia e com todo merecimento, é Kelan Phillip Cohran. Um dos gigantes do jazz de Chicago desde os anos 60, ele tocou na Arkestra de Sun Ra, fundou a Artistic Heritage Ensemble, criou um som único (e alguns instrumentos) e ainda fez muitos filhos – que fundaram a banda Hipnotic Brass Ensemble, que já passou mais de uma vez pelo Brasil. Se os filhos vieram, agora é a vez do pai, que toca no Sesc Belenzinho nos dias 28 e 29, em apresentação solo. A Radiola Urbana conversou com o genial mestre – sem exageros aqui – e ele contou um pouco sobre a cena jazzística de Chicago, a invenção do seu instrumento frankiphone e seu disco dedicado a Malcom X. Leia!

O que seus admiradores brasileiros podem esperar de seus shows aqui?
Vou tocar em cima de bases pré-gravadas: harpa, frankiphone (o instrumento que eu inventei), piano de dedo africano, trompa francesa e uma corneta. Vou apresentar meu trabalho e uma música especial, do disco “On the Beach”, que foi gravado em 1967. Também vou cantar e recitar poesias. Estarei sozinho no palco, criando e improvisando por cima dessas bases pré-gravadas.

Você cresceu em St. Louis. Como conheceu e começou a tocar com Sun Ra?
Eu e (o saxofonista) John Gilmore tocávamos juntos em várias ocasiões e um dia ele me levou ao ensaio de  Sun Ra. Nunca mais saí. Ensaiávamos seis horas por dia e tocávamos outras seis à noite.

Quando você se mudou para Chicago, como era a cena de jazz na cidade?
Quando me mudei, em 1953, tocávamos sete noites por semana. Não tínhamos nenhuma noite de folga. Nesta época, na comunidade negra de Chicago, não havia diferença entre os dias úteis e o fim de semana. Quer dizer, para o povo trabalhador havia essa distinção. Mas havia tanta gente nas ruas, como traficantes e outras pessoas que faziam algum tipo de trabalho extra, que você não conseguia dizer que dia da semana era a partir do movimento na cidade. O movimento era o mesmo em uma noite de sábado ou segunda. Esse foi um dos motivos que me levou à Chicago, mas principalmente porque queria estudar composição. Me disseram que eu poderia estudar um sistema matemático de música chamado “Shilingers”, mas quando encontrei quem pudesse me ensinar, me cobravam muito caro. Então comecei a estudar folk music fora da biblioteca e tive a sorte de ter 35 ou 40 culturas diferentes ao meu redor. A partir daí, comecei a procurar performances ou qualquer outro tipo de manifestação cultural que me interessava. Finalmente, percebi que não havia estudado profundamente a música norte-americana e comecei a fazer uma análise clínica do jazz, do blues, dos spirituals e também da música clássica. Acho que, assim, eu dei minha contribuição: tocando um instrumento africano inventado por mim, tocando vários tipos de cítaras, tocando instrumentos ancestrais, eu abri um pouco as portas do jazz para a música do mundo. Esse é o futuro.

Qual é a importância da AACM e como você participou de sua criação?
Bom, antes de mais nada, não que eu queira reivindicar esse mérito, mas havia pouquíssimos homens de negócio entre os músicos. Eu era técnico de impressão digital do departamento de polícia em Chicago e tinha um apartamento muito grande. Conheci Steve McCall, Herb Hall e Richard Avert e decidimos reunir todos os músicos que conhecíamos para discutir caminhos para mudar nossos destinos. Assim, no dia 8 de maio de 1965 (meu aniversário), foi realizada uma reunião com cerca de 40 músicos que apareceram. Discutimos por várias horas sobre “música criativa”. Decidimos que devíamos tocar nossa própria música, não a dos outros. Eu pedi permissão para tocar spirituals, pois já vinha fazendo isso nas minhas performances. Com essa exceção, devíamos tocar apenas nossas próprias composições e foi assim que mudamos não apenas a indústria fonográfica, mas o mundo. Criamos um mapa de auto-expressão. Assim, começamos a tocar as cordas do piano com martelos, colocamos arcos nas guitarras, usamos talheres para tirar sons dos instrumentos, vários experimentalismos. Esse foi o efeito da AACM na música. Atualmente defendo a consonância e muitos dos integrantes da AACM se identificam com as dissonâncias. Por isso, escolhemos caminhos diferentes. Mas a AACM mudou o mundo que estávamos vivendo.

Como você inventou o frankiphone?
Percebi que eu podia criar um piano de dedo melhor dos que eu conhecia. Achei um caminho para encontrar os acordes e fiquei muito feliz em trabalhar no meu próprio instrumento. Na verdade, quando encontrei as molas de aço, comprei todo estoque da empresa. Eu atribuo a elas o brilho das minhas notas. Tive muita sorte, sinto como se pudesse fazer tudo o que eu tivesse de fazer. A ideia desse ajuste veio da minha experiência. Eu voltei aos meus antigos estudos para compreender a relação entre as várias formas de folk music. Por exemplo, como as estrelas e as notas musicais se relacionam; como o arco-íris e os chacras do corpo formam o sistema endócrino; e como o espectro do cosmos é uma única expressão harmônica. Eu tendo muito a estabelecer relações cósmicas porque fui astrônomo por 54 anos e eu aprendi a relacionar o cosmos, a música e os acontecimentos cotidianos. Minha música é construída a partir da realidade que vivemos todos os dias.

Você gravou o álbum “The Malcolm X Memorial”. Como a situação política e luta pelos direitos civis influenciou sua música nos anos 60?
Essa é uma boa pergunta. Eu era tenente da mesquita de Mohammed em 1962 e 1963 e era amigo próximo de Malcolm. Quando ele foi assassinado, me sentei e escrevi imediatamente a música “Malcolm X”. Depois, escrevi as outras três. São quatro músicas porque eu via quatro pessoas em Malcolm X, quatro estágios de desenvolvimento. Quando lancei o disco em 1970, corri todos os riscos e fiquei isolado desde então – porque todos sabiam que eu sou um defensor dos descendentes de escravos e essa é minha forma de oposição na vida. Toda a minha obra e todas as minhas músicas foram escritas como uma expressão desta condição. Sinto que eu tenho o direito de me expressar como qualquer outro artista baseado nessa condição: ancestral, presente e futuro.

Como foi gravar com seus filhos? Você acha que eles dão continuidade à tradição de outras bandas de Chicago como The Artistic Heritage Ensemble, Art Ensemble of Chicago e The Pharaos?
Acho que eles fariam melhor, pois a maior parte destes grupos foram planejados por mim. Meus filhos estudaram música por duas horas, antes de ir à escola, durante praticamente oito anos. Hoje ele são os sete integrantes do Hipnotic Brass Ensemble. No único disco que fizemos juntos, tivemos apenas dois dias para ensaiar e um para gravar. Não tivemos um bom ensaio e a gravação ficou terrível. Eu acho que, para fazermos uma gravação decente, precisaríamos de no mínimo uma semana de ensaio.

(Por Alê Duarte)

Phil Cohran
Sábado (28-06) e domingo (29-06)
Sesc Belenzinho
R$ 8 (comerciário), R$ 20 (meia) e R$ 40 (inteira)

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